quarta-feira, 18 de março de 2020

postal a Pondichèry

melhor ser joalheiro do que mau poeta
disse Diderot ao homem de Pondichèry
(e também à Adília)

eu fico pensando nos joalheiros
sem ironia
penso no preço da obra, naquelas
lentes fixadas ao olho
na beleza pura e sem explicações

palavras são coisas feiosas que a gente disfarça
insetinhos tortos que comem a casa
larvas pela carcaça
palavras são desculpas esfarrapadas
para o orgulho feio de velhos carecas
(coisas de românticos meio necrófilos)
mas mulheres carecas também escrevem feias palavras.

o único jeito de entender Diderot
é fingindo demência da sua ironia:
jóias, gioia, folia!
melhor ser má poeta, madrasta má
e má entendedora,
talhar sem tesão
nem trocadilhos
ver a coisa nascer do brilho:

beleza pura, dinheiro yeah

todo poeta quer ser joalheiro.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

translating A Kiss

her oblique kiss avoids the english language
across
as it gives it color.
a kiss on the wrong lane
on the horizon
out of reach,
corner of our lips.
A kiss lost under a rug, left
on the porch of an old house
flies
with liftoff bubbles.

A kiss, like yours,
undone in spy tones
through a keyhole,
over a fence,
timid in iced coke:
dark.
A kiss in blue
the disappearing lips
of a poem


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Morar demora

Morar demora.
primeiro a casa, que se habita aos poucos: a casa cheirando a livro novo, cheiro que se vai esquecendo à medida da leitura das páginas. O sabor dos cantos e as manchas na parede que se parecem com lagartos e dinossauros. O papel de presente rasgado de cada abrir da porta de entrada. A novidade da casa é sedutora para uma pessoa que sempre disse: meu lugar mais confortável é a estrada. Não sinto mais o cheiro da casa, como não sinto o meu cheiro, mas gosto de apertar as narinas contra meu braço direito e me lembrar que também tenho novidade. 
Morar, ainda, demora, mesmo quando já se mora a casa (não se mora na, nem em, assim como não se namora em alguém: se namora e se mora a casa). Mas mesmo quando já se mora a casa, até mesmo o quintal (com sua particular translação, as linhas do sol de mês a mês que começam por acordar o pé de manhã e vão subindo para a cabeça, com seus grilos que se tornam cigarras e suas acerolas que se tornam ipê, e novamente acerola), ainda não se mora. Não completamente. Morar demora. É preciso então morar aos poucos a rua, o latido do cão do vizinho, que parece grande mas é pequena, que conversa com o nosso como conversamos com o alecrim, é preciso morar o mercado, a praça, tudo onde se come onde se bebe, a tua presença (morena morena). Como se conhece um grande amor, é preciso conhecer o mercado, as cores dos caminhos, o moço que vende mel na frente do banco, e o melhor café. Morar o bairro, ou se chama cidade isso onde moro? Onde estou morando, com cuidado, cautela, com a contra-mão da voracidade da cidade antiga se chama bairro, mas é a minha cidade. Quando digo minha já a perco, como perco tudo o que quero ter, porque morar, como namorar, não é ter. Morar a universidade foi reencontro, continuidade do flerte constante do nosso apaixonado relacionamento à distância. A cidade ainda me olha com olhos de bicho meio domesticado meio arisco, com os quase amigos, os vens e vais. Morar tem demorado. Sem pressa, no tempo do bastante. Essa semana, depois de floridas as sibipirunas escondidas, choveu. Chove pouco aqui. Frases que eu não posso dizer, porque não te conheço. Nosso amor é novo, desde sempre. Essa semana choveu e deitaram-se as flores das sibipirunas pelo chão. As árvores de ovos mexidos. Essa semana eu fui encontrando os caminhos, esbarrando os semi-desconhecidos, os rostos que pairam por aqui, escutando os sons que aqui se tocam, trabalhando no que aqui se trabalha, com pessoas que aqui estão, e fazem aos poucos caminhos leves em mim. Essa semana eu vi os chãos de ovos mexidos que penteavam as ruas das minhas antigas casas. Essa semana eu tenho sentido, de rosto meio corado, que quero dizer, como quem pergunta pela primeira vez se posso te chamar de namorado, que tenho morado, estou morando em Barão Geraldo. 

segunda-feira, 13 de maio de 2019

the girl with glasses

I missed you today,
small blond girl
small pink
red
blond girl.

It finally happened
I missed your glasses.

It was as simple as that,
I placed my chin on my left hand
I pushed my glasses up with the back
of my fingers
and I saw you
adorable and cruel,
the Sylvia Plath of soft skin,
the serious look as you scratched your nose.
It took me long years to relate to your allergies.

maybe because I read her,
maybe because it's long over
due

Our friendship and
a thick book of quotes,
the rushed instances of activism.
Like the water died
from a red dress
washed for the first time.
red, but not quite
Lovely, over,
and out.
clear is now, for my thirst
clear is needed, for some strange sort of
peace.

I can miss you;
your soft glasses
your acid stare
something lovely and acre in our past.
I can miss you like I can read
Lady Lazarus
and still be
alive.

I push my glasses up my nose
the way I learned from watching you.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

com cuidado para não borrar o esmalte

inverno novaiorquino
os navios no espaço carregam correntezas
ou a próxima neve (sempre difícil de ancorar)

(como se diz chover, só que para neve?
 como se diz quando está chovendo neve?, ela me perguntou)

eu não sei escrever de memória
só escrevo o último sabor
antes de escovar os dentes.
borro o caderno de esmalte de tanta impaciência,
como uma criancinha
e gosto de dar mordidas grandes em punhados de neve.

Lá o desconforto é menos largo,
a meia-calça aperta: dentro de casa é seco,
fora de casa é frio.
gosto do frio, mas sinto dores como uma velha.

(aqui não. aqui tem acerolas e o escritório é um
forno. quando tento me lembrar,
coço no ar as patas de um verso mal escrito)
tinha o amor a poucas esquinas
aquele que está sempre perto e longe demais,
como o cartão postal
que chega em casa depois de mim,
Vem me receber na porta
com olhos de cachorro velho
e flocos de neve já sem cheiro.

me pergunto se isso de exercitar a caneta serve mesmo pra alguma coisa

me pergunto se é possível escrever sobre qualquer
outra coisa, que não essa paixão antiga
de enlatado, esse ready-made
luzinha que pisca num farol a cada seis meses
(o farol que demora seis meses para girar
poderia ser um conto, mas não será)
me pergunto se aquele abraço,
ou aquele, ou aquele outro,
valem alguma coisa, no rosto da página seguinte.

escrevo sempre mais uma linha, pra ver se a próxima
descongela a anterior:
passo quarenta minutos com a perna debaixo da água quente,
faço massagem com o sabonete,
desempedro minhas coxas de velha, faço alongamentos,
procuro deixar o músculo vivo, hidratar a dobra.
Bertha Young aposentada,
ou a criança trancada no armário da prosa de Dickinson.
O que é, afinal, uma mulher adulta?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

cartilha da light

Desligue as luzes de dia 
Abra as janelas 
Acenda velas
Tome banho frio 
Guarde energia pro amor.

Não ligue o carro.
Vá a pé 
Não veja televisão 
Não telefone 
Desça de escada 
Economize pro amor 

Silencie o grupo de família 
Esqueça a conta em cima da mesa
Não pegue trânsito 
Desligue o Wi-Fi 
Salve um pouco pro amor 

Regue as plantas 
Todos os dias 
Escute o barulho da semente 
Corte cebolas 
Destranque a porta dos fundos 
Tire as roupas 
Desconecte os pontos 
Assista as veias azuis nos teus braços 

Pise descalço no asfalto molhado da chuva
Escute o som do dia acabando 
Abra cartas com um cortador de papel
Deixe a caneta tinteiro formando uma poça
Roxa 
Inundar a sua escrivaninha 
Repare na folha, na asa, na núvem escura 
Invente energia 
Num laboratório escuro,
no meio da noite

invente energia pra nós.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

quinze minutos

em momentos breves
imperceptíveis
que piscam entre uma xícara de café
e o próximo copo d'água
quando nada se vê debaixo da minha pele
rosada
naqueles instantes lisos
em que a minha alma corre perigo
solta num vazio de signos

(luzes coloridas acendem
apagam
a frase musical que não comunica)

nos momentos em que um pedaço
fundo e escuro dentro de mim,
velho como a arena de Verona,
flutua perdido no espaço

momento em que nenhuma palavra ancora
o lastro grosso do traço
(não do silêncio, mas do ar condicionado)
ruído branco, espesso, pálido

nesse quarto de hora em que não se espera nada
minha alma quieta está em perigo.

é de repente nessas horas que eu torço
por uma notícia tua.

não tem nem nome de saudade isso
é a ponta de um pé que desliza procurando
a areia do fundo
não chega nem a ser saudades isso
porque não é coisa que se mate:
é a mão que tateia o interruptor
é o pé no freio,
o corrimão na escada escura.

eu espero notícias tuas
que o mundo não acabe,
- como se espera a previsão do tempo -
que chegue a eleição
que não chova amanhã de manhã
que chova na cantareira

eu espero notícias tuas como espero a voz da vizinha
cantora lírica pela janela
como espero que não tenha acabado o azeite,
que volte o sinal do wi-fi.
As tuas notícias são menos notícias tuas
mais a prova dos nove:
a luz que bate no objeto e
carrega até os meus olhos,
o vento que me lembra que tenho pele.