quinta-feira, 7 de outubro de 2010

a taste

Queria te experimentar.
como... cama, lençol, comida. pêssego.
Não quero te devorar, não desejo me saciar,
olhar-te do outro lado de uma superfície lisa, pós-gozo.

Me incomoda essa ordem dada da paixão: prioritária como a fome.
Não sinto fome, não sinto paixão, não vejo fogos de artifício.
(artifícios para o desejo de saciar e preencher um vazio que não existe!)

"I'm not obsessed, I'm just curious."

Desejo o inverso da ordem da sede apaixonada, quero beber pelo entorpecimento: não tenho sede.
Que venha depois, se vier, a necessidade, o desespero entregue dos amantes infantis.
Quero a experiência, a prova, o gosto pelo gosto, pelo gesto, pela exploração de um corpo, uma mente, uma alma que não são minhas.

Peço-te a inversão desse padrão faminto.

alimentemos a saciedade! ----- deixemos pra lá, pelo menos por enquanto, a necessidade da fome.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Mancha

Domingo,19, ao levantar tropecei em um rascunho, esse:

A Mancha

13hrs. Levantei-me. Tenho que ir, pensei (forma carinhosamente autoritária de pensar "quero ir".) E como sempre, quando levanto-me para estar ocupada em ir, no caminho de ir- até o armário-a porta-o banheiro-as chaves-a saída. - No caminho de ir desviei-me e recolhi do chão a blusa branca de ontem.
A blusa branca de ontem.
E lá estava ela: a mancha. Eu que me conhecendo, teria largado-a ali, procrastinando minha responsabilidade pelos exames, que era preciso fazer nas manchas dos meus braços, procrastinando minha responsabilidade por olhar ativamente -e não apenas de dentro dos olhos- o que se fez ontem... Eu -das imensas orações interminadas- , surpresa, levei imediatamente a blusa em direção à lavanderia.
A blusa de ontem. Da noite de ontem, da noite Virginiana de festa de ontem. Humilde, branca, um dia adolescente minha dita preferida. A festa. A festa passou despercebida, como eu pela época descabida da vida, que eu escolhi chamar "oitava série" (mas que na realidade durou também a sétima e a sexta)
A entrada da casa da noite anterior: atravessar sozinha um pequeno portão esquecido. Memória precisa como um ponto de interrogação resgata-me, e quase posso sentir o mesmo gosto na sola dos meus pés, do dia inadequado da outra festa, oito anos antes. Sou quase o Peter à porta da festa de Clarissa, sem canivete para desembainhar. Pelo pequeno jardim vazio daquela casa, a mesma exata escuridão. Procuro relembrar ao meu corpo imediatamente os anos passados, os centímetros ganhos, as distâncias percorridas, orgulho das pontas grossas das minhas vértebras.
A percepção instantânea da porta: tudo aquilo que está sempre à beira de não mudar nunca.
A cidade-dormitório estática, enquanto passam as bandas passadas, os bandos de pássaros.
Eles bebiam. A inadequação das minhas sandálias baixas não é menor que a dos meus antigos coturnos. Ainda assim, há na falta daquele amargor antigo, um conforto de menina feia, um conforto das velhas de meias marrons, de varizes e almofadas. De verdades das contas no fim do mês.
A Clarissa da casa é amigável. Não espero, desde a soleira, mudança alguma. Mentira. Esperei, esperava, esperarei eternamente uma prova de que não se vivem anos e anos a toa, como se tivesse ido à esquina comprar pão, e na volta perguntassem palidamente desinteressados “como tem passado?” A dona da casa não é, como já não era antes, dona olhares de julgamento, das desagradáveis marcas de isolamento. Sempre foi, agora me recordo, exatamente assim. Sempre fora doce, sempre divertida, doce e divertida, na sua medida precisa de dona dA casa. Não a critico, meu desejo de aproximação é honesto, e limitado apenas por essa condição pré-determinada e incriticável: como as margens da página. Jamais poderia alguém ter um “a” a dizer desta Clarissa, eu menos. Agradeço-a, afetuosamente. Meu incômodo é o quadro estanque, é a dura realidade dos mesmos exatos talheres sobre um prato: nós estamos todos exatamente aqui, como sempre –exatamente- estivemos. O meu incômodo sou eu, incapaz de relacionar-me com outros olhares diante da corja de corujas velhas conhecidas de vista. Enfim... começo a adequar-me, espero, com a certeza que tive da soleira: não há mudança alguma, externa ou interna.
Eis que, surge-me espelhada, ex-maquina, a estardalhosa identificação! A garota tinha o meu nome! São saudades guardadas e não sentidas em anos, daquela mesma exata sensação de salvamento: obrigada pelo humor! “Mais perua a cada dia hein?” – gralha ela para a figura na minha frente, tirando-me leve do cortejo fúnebre de entrelinhas! A identificação e as conversas são exatamente iguais, o que neste caso é um reduto de positividade e liberdade, encostadas na parede, como sempre havíamos sido. Ela, expansiva e encaixada, apesar de diferente... Eu, socialmente raquítica, atrás das cordas de guitarra que desciam pela minha fronte. Éramos assim, iguais em algo que jamais entendi (fora o nome). Duas crianças que cresceram para ser exatamente o que eram, no lugar onde antes estavam. Sim, porque eu que posso apenas falar de mim, sei que fora dali sou outras. Tantas. Mas ali, os mesmos cabelos, talvez apenas um pouco mais afastados dos olhos.
Em meio ao agradável esquecimento momentâneo da inércia, ouvindo os nomes que já nem me lembrava, tomando conhecimento das minúsculas mudanças ilusórias,e bebendo-as sedenta (“Acho que hoje em dia ele é gay!”- gargalha ela), ouço a voz ainda pomposa e excessivamente pensada ao meu lado. Um braço descuida-se, e eu, invisível, recebo em cheio a onda de vinho que escorre pelo meu decote pouquíssimo sensual. A blusa é branca, o vinho tinto.
Ele se chamava Júlio. “Se lembra da fase cafa do Júlio?” “Não, definitivamente não.” A evidência dos nossos anos de invisibilidade, ao contrário do que pensam os grandes blockbusters, não são os garotos bonitões, nem as meninas mais populares. As evidências dos anos desencaixados e fracassados que resumo em oitava série, são os desimportantes desagradáveis, aqueles que tomaram uma voz que não lhes foi dada, aqueles que decidem escalar a grande pirâmide social infantil. Aqueles que tomam a atitude detestável e desprezível de se fazer ouvir na grande empreitada em direção a um topo muito mais pobre que o fundo de onde decidiram sair. Aqueles que acreditam ter nos vencido em uma batalha que jamais teríamos desejado travar. E continuam, contra todas as demonstrações de WO, fazendo questão de, com des-olhares, evidenciar sua “vitória”. Este era Júlio. Desprezado, pseudo-politizado, indeciso escalador da pirâmide social infantil. Conheço tantos homens por quem não tenho particular respeito, e que não têm também por mim particular respeito, e todos eles, sem exceção, teriam ali voltado-se imediatamente para a figura ao seu lado e reconhecido o deslize. Todos eles teriam pedido desculpas. O jogo em questão ali não era a antipatia entre as partes, mas a continuidade descabida e assustadora do velho esquema: a necessidade de afirmar-se menos invisível que eu. Com toda sua pompa descabida de proletário recém chegado do comício, bebendo vinho tinto com os tucanos, Júlio não parou um segundo de falar, não desviou sequer os olhos da conversa que travava. As muitas que sou fora daquela casa poderiam ter rido, ou mandado o jovem à “rrrreputíssima madre que te contraparió”... Mas eu pude apenas observar, desgostosa dentro do meu desejo de mudança, a rasteira crueldade que têm as crianças: ali, no adulto de terno ao meu lado. Minha incapacidade de fazer-me ouvir nesse salão de espelhos ofuscantes nunca me fora tão consciente. A dor não era mais a dor. A dor era apenas uma espécie de tédio, uma espécie de cansaço de cobrador de pedágio, preso a um ofício distante. Uma figura adolescente velha. Uma velha na oitava série, com 22 anos de idade. “Fui eu?” Pergunta o garoto ao lado dele, que não conheci. Eu rio. “Não, não se preocupe, foi ele.” Júlio ouve, força alguma frase análoga a um pedido de desculpas, mas que não chegue a pedir de fato desculpas, que não o rebaixe de mais, que não o faça olhar-me, ver-se no espelho satisfeito, em mim a imagem do conforto de menina que fora feia, de menina feliz.
Alguns minutos mais tarde, na porta do banheiro, lavo com o sabonete deles a mancha vinho. A ferida. Não sinto a menor dor, quero apenas o impossível, quero vida nas almas dos cadáveres que dançam à minha frente, quero alma nas rosas mortas em cima de tantas mesas. O garoto escalador espera sua vez diante do banheiro. Pergunta-me, um pouco incerto, um pouco homem-diante-da-barata-rainha, olhando-me de toda aquela altura: “saiu?”. “Não”, respondo. Ele se aproxima apenas o necessário “Ah, nem da pra ver!” O falso descaso é a marca dos inaceitos. Eu sou para ele como a próxima linha de calouros, fui a irmã mais nova que escapou de casa. Ele carrega consigo a marca orgulhosa de quem resistiu a todas as provas, de quem aceitou de cabeça baixa os chicotes dos seus veteranos. E odeia-me, por não participar dos jogos.

Olhava, na lavanderia, para a mancha. Como se ali residisse a permanência da qual fugi. Como se ali lembrassem-me os anos, de que há lugares onde não terei ido sequer à esquina. De que posso achar a cura para o câncer, porque nesses lugares, não há o nome da doença, não há a necessidade para a beleza. Ela me parece imensa. A mancha me é o mundo, me engole os olhos, tinge o seu cinza de roxo, tinge-se de cinza... que cinza é cor de permanência. Meu olhar questiona: o tanque, o sabão, ou a cândida. Considero a violência contra meu próprio tecido (a mancha que estava bem em cima dos lindos bordados da minha madrasta boa), considero com a força das Amazonas que aprendi naquele pátio, quando as garotas peitudas caçoavam minha falta de sutiã. Tomo-a nas mãos, minha espada, minha arma química que devastará uma inteira civilização. Sou imensa e violenta, tenho em mãos a bomba H, e o poder viscoso de quem cresceu e ainda se esconde.
E é aí que está a beleza da banalidade racional: do espaço para as medidas sem alarme. A possbilidade de tentar, antes da Grande Guerra. Apoiei de volta a cândida, ameaçadora e feminina, a Kali do meu arsenal pessoal. Molhei a blusa na água gélida do tanque, e tomei nas mãos um punhado de sabão em pó azul.

Saímos. Ambas. Ela, e eu. Meu espanto prostrada no meio da lavanderia, não é mais com a permanência, mas com sua contradição. Meu espanto é pela não gravidade das situações todas. Meu espanto é pela desnecessidade da guerra. Saiu, como saíra eu da casa da festa, após o encontro em frente ao banheiro. Saímos do ambiente ambíguo, sem justificativa, nem amor. Como eu saí do cárcere sem fugir. Ou da premiação, sem esperar que chamassem meu nome. Retira-se, nem triste, nem satisfeita, como alguém que tivesse provado um ponto. Se não olhasse, não haveria mancha alguma. Nunca teria havido mancha alguma. Seca, bandeira branca no varal, permito-a os anos e os ventos da minha janela. Deixo-a descansar solene sobre sua terra de paz, ela que sabe o nome do sangue, para quando dele precisar. Se olho-a de perto, vejo-a, lá em cima, como quem tivesse de fato provado um ponto. O ponto, deixado de ser ponto, dissolvera suas bordas: levíssimo ematoma sutil sobre meu esterno.