domingo, 16 de junho de 2013

Linguagem: Arma de "efeito moral"

Existem obviamente milhões de aspectos pra se falar nessa situação atual de SP e do Brasil. Todos eles são relevantes e urgentes, a ponto de nos tomar a energia, o tempo, e as emoções. Mas no momento eu quero falar da linguagem.

Terminologias não são arbitrárias ou inocentes, e eufemismos, quando se trata de uma situação desesperadora, são armas de dispersão que as autoridades usam à torto e à direita, para nos desestabilizar. A linguagem autoritária da mídia não é só a que explicitamente incita o ódio: é a que joga meias verdades e um punhado de frases feitas para desviar a atenção da população, desestruturar o movimento sem fazer barulho e sem mostrar a cara e o punho. É arma química, quase.

Por isso mesmo é que eu quero escrever como se falasse, trocasse ideia comigo mesma. Porque todos nós somos leitores, e por isso somos também escritores (não se privem desse direito!) Escritores da própria opinião, escritores em conjunto de opiniões alheias, relatores de fatos e testemunhos, escritores de perguntas e hipóteses para respostas. Em última instância, me parece, escritores – sim, abracemos a pieguice factual-  da história do país.

Porque eu não quero me preocupar com a linguagem formal, com a estrutura do texto que o dê legitimidade intelectual. Porque isso aqui não é uma questão de ser legitimado pela academia ou pelo raio que o parta. Alias, é essa necessidade de legitimação que cala a boca de muita gente que quer falar e acha que não sabe como, porque não tem (supostamente) os instrumentos pra isso. Você tem, nós temos, escreva. Então quero passar longe de um texto bem estruturado e preocupado com uma argumentação coesa e aparentemente plácida. A linguagem coesa, plácida e pacífica costuma ser a superfície mentirosa dos conflitos e das tensões. Não acredite na superfície plácida da linguagem estéril da grande mídia. Escrever sem emoção ou paixão nem sempre é sinal de objetividade: é muitas vezes estratégia para desmotivar o leitor. Eu quero justamente o contrário.
Vamos aos termos, expressões e ideias que desgastam quase invisivelmente a efervescência criativa e geradora de movimentação política:

bombas de efeito moral Polícia utiliza bombas de efeito moral para dispersar manifestação; etc
O que é esse “efeito moral”? por acaso são bombas que explodem liberando o som de uma bronca da sua mãe? “menino, que coisa feia!” ?! Como uma bomba pode ter um efeito apenas moral? Toda bomba tem, também, um efeito moral: a agressão física é também uma agressão psíquica, afeta as nossas emoções, gera traumas, desmoraliza. Porém as “bombas de efeito moral” podem ter um efeito físico extremamente eficaz, violento, como toda bomba. Veja as fotos, leia os relatos. Assim como as balas de borracha (parece arminha de brinquedo no termo né? Não é.), elas podem nos cegar, nos perfurar a pele, impedir a respiração, quer que eu continue? Isso é violência física muito antes de ser moral. É o Estado no nosso corpo, diretamente.
Se fosse guerra (e depois a gente pode discutir esse conceito, e se ele não se aplica mesmo, mas fica pra outro dia), estariam usando outro termo que serve para a mesma estratégia: casualidades. O que são “casualidades”? São mortes de gente que não tinha nada a ver com a treta toda, e foi morto porque “ops, o míssil caiu em uma escola, mal aê!”. Acho um absurdo permitirmos que se use esse termo para designar vidas. Não é casual matar pessoas. É a coisa menos casual que consigo imaginar.

Continuemos:
-parar o trânsito: Manifestantes param o trânsito; Polícia militar fecha a Avenida paulista para evitar que manifestantes parem o trânsito. Etc.
(Nem vou discutir a fundo o problema que é a valorização do direito dos motoristas em detrimento dos direitos de se manifestar, -e eu também sou motorista hein-, nem discutir o ridículo que é essa linha de raciocínio na qual se bloqueia uma via para impedir que alguém bloqueie essa mesma via. Pouquíssimo contraditório, né?)
Mas vamos só atentar para essa ideia que não para de circular: parar o trânsito. Alguém aí já pegou o trânsito da nossa amada Sampa às 6 da tarde? É algo em movimento por acaso? Quer dizer que o nosso direito de ir e vir está garantido quando ficamos horas na “primeira, ponto morto”, e o rádio explica “apenas excesso de veículos”, mas esse direito é violado quando essa mesma lentidão se explica por excesso de pessoas reivindicando direitos?! É isso mesmo?! Deixa eu entender então: alguém manda um relato de quantas horas demorou pra chegar em casa em dia de manifestação, e quantas horas demora em dia de verão com chuvas torrenciais na hora do rush? A péssima organização da cidade que não comporta seus habitantes e não suporta 10 minutos de chuva forte não viola o direito de ir e vir, mas os manifestantes sim? Cansei de ligar o rádio esperando uma explicação excepcional que desse razão pra tanto trânsito, e ouvir insistentemente “excesso de veículos”.
Ia ser legal se trocassem todas as vezes que dizem no rádio essa expressão excesso de veículos por insuficiência de transporte público. Porque notemos que o uso da expressão anterior é super útil pra deixar todo mundo de fora do problema: “eu estou dentro da quantidade razoável, o veículo do outro é excesso”. E o governo também fica des-responsabilizado nesse discurso, porque afinal não cabe ao poder público meter o bedelho na liberdade do cidadão de comprar carro. E aí é lindo: temos um problema irresolúvel, sem causa e nem agente. O lugar do culpado pelo trânsito fica vazio, esperando por alguém que pague o pato, vire autor. E aí aparece a manifestação: perfeito! Pronto, estão parando o nosso trânsito, que sem eles, afinal, fluía lindamente e só me dava alegria.
Não to dizendo que a manifestação não piore o nosso trânsito já catastrófico. Piora. Mas pra quê? A questão é que esses discursos escondem ideologias, prioridades, privilégios e bodes-expiatórios. E quem profere não faz sem querer.

A última vai ser mais curta, que a vida na internet é rápida e você já está de saco cheio de ler isso.
- Baderneiros. (Vou deixar sem exemplos, para o bem do leitor)
Quando a mídia, o Jornal Nacional, ou o seu vizinho chama um grupo de manifestantes de baderneiros, o quê estão fazendo? Implicando que bagunça (ou baderna mesmo) é aquilo que está sendo feito por esses sujeitos, realizadores da ação. Fazer baderna é bagunçar algo que, presumivelmente, estava em ordem, certo? AHÁ! (como no vídeo) Aí é que está. Digam, meus caros paulistanos, a nossa cidade vive algo próximo à ORDEM? Eu não conheço essa realidade. Chamar os manifestantes de baderneiros é dizer que sem eles a cidade está em ordem. A cidade de São Paulo é descrita pelos seus moradores como caos todos os dias. O discurso da baderna ajuda a esconder esse caos, e é justamente para mudá-lo que essa tal “baderna” se instaurou. Ilusão de uma cidade organizada, em ótimo ritmo de funcionamento: É para isso que serve a palavra baderneiros.
Quando a gente arruma o quarto direito, tem que abrir as gavetas, caixas, olhar cacareco por cacareco pra poder jogar fora o que não serve mais. Em primeiro momento isso faz mais bagunça, de fato. Tão entendendo onde eu quero chegar?

Enfim. Quem está lutando, falando, querendo poder falar, a meu ver tem que desfazer, de forma direta e reta, curta e grossa, esses eufemismos e desvios de atenção causados pela linguagem da grande mídia e do poder público. Precisam aparecer na mídia (grande e alternativa) imagens e palavras que lembrem o contrário dessas afirmações tendenciosas. Palavras que retomem o foco, reconstruam o que essa linguagem mal-intencionada de publicitários vestidos de jornalistas desfaz. Por isso a minha vontade pessoal é carregar cartazes que digam coisas óbvias que precisam ser ditas, como “polícia, vocês têm armas, nós não!”
É preciso que apareçam as nossas palavras por cima desses eufemismos autoritários, desses desvios de foco, desses tranquilizantes escritos por aí. Os nossos cartazes, relatos, status, tweets e etc têm que trazer de volta a atenção para os pontos que interessam. É preciso lembrar a todos alguns fatos como: arma não-letal É ARMA. (Aias, arma não-letal parece o velho “estupra mas não mata” né? Tudo bem ferir pessoas que não te feriram, desde que não as mate?!) É preciso lembrar a quê viemos, e desfazer a máscara das palavras bem pensadas e estratégicas da mídia autoritária. E isso não quer dizer ir contra metáforas, figuras de linguagem em geral: mas é preciso lembrar das mentiras em forma de fatos que se cospe por aí.

Pra terminar vale a pena lembrar um tumblr (sim, vou citar um tumblr, não um artigo nem um livro, nem um discurso de um intelectual de peso): http://privilegioinvisivel.tumblr.com. Desmascarar a linguagem autoritária é também lembrar que a Veja chamou, em uma capa, a mulher negra de “ela”, e em outra capa, o homem branco de “você”. Pronomes fazem diferença! E o tumblr lembra: “Privilégio é ser tratado como “VOCÊ” e não por “ELA” pelos maiores meios de comunicação do país” (http://privilegioinvisivel.tumblr.com/post/52154996150/privilegio-e-ser-tratado-como-voce-e-nao-por)
“Você” para a grande mídia é motorista de carro, branco de classe média ou alta, e cidadão alienado. E “eles” são os baderneiros. Proponho que a gente pense assim: nós somos cidadãos de São Paulo, o que faz sentido pra nós?


20 centavos é pouco? Sim. (Pra mim é, para outros não, mas no momento vamos pensar que seja pouco). Sabe a expressão “gota d’água”, “drop of the bucket”? A imagem é a seguinte: balde cheio, cai uma gota a mais, e transborda. Uma gota de água é pouco né? O balde estava cheio.