segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Cordilheira

O mundo, e não você, me deu esse terrível direito, esse desmedido dever, esse presente despido de dizer quem é você.

Você é um anjo negro vindo do mar,
por ondas escuras em largas braçadas,
de asas encharcadas
e botas pretas de couro pesadas como carvão.

Sobre a areia da praia branca, você aterrou estacas,
hasteou bandeiras cansadas, desatou os cadarços
e se tornou cordilheira.

Os primeiros habitantes te ofertaram o sangue dos cordeiros
A noite do mais denso nevoeiro
Te erigiram, como homenagem, fogueiras de sal e pedra.

Nada habita tua montanha frágil como o sono dos ventos.

Durante séculos és o espírito que dorme em desníveis de escuridão.
Mas a velhice também acomete as forças debaixo da rocha,
e começas a brotar flores pelas frestas.
são todas miúdas, amarelas,
nada do que se conhecia como teu.
O teu povo secou nas serras, morreu em brasa,
partiu em pequenas embarcações.
A ilha resta intacta, esteira de dias, paragem de pássaros.
Um dia elas brotaram
A velhice do teu espírito deixou que entrassem,
saíssem
As calmas delicadezas que nunca tuas foram
As almas de fadas e duendes, a pequenez que desconheces
brota de ti por cima dos anos, para além das tuas memórias de deus.

A encosta a escarpa a crosta
se racha
Tua morte desperta lenta do pesadelo da montanha eterna:
não serás infinito, se assim não o quiseres.
És livre para deixar-te.
Abre-se a terra, e de dentro das rochas sai o anjo torto
de botas pretas de couro,
passa as mãos escuras pelos cabelos de terra
boceja
Estica os braços na direção da fonte, e bebe da tua própria terra a juventude
Ela cora, desajeitada, a fonte de frontes leves e azuis
Tua amante casta de cantos fluentes
todas as línguas dos braços de rios.
Suja a tua fonte de terra das tuas mãos,
lava teu rosto e se lembra o gosto de tudo o que era antes de nascer o calor.
E ali mesmo, tomas a decisão:
desse instante em diante nada mais recordarás
Do Mar
Da Estrela
Do Centro onde nada vibrava em uníssono, e você nasceu
Com uma pedra afiada do riacho,
talhas a primeira asa
talhas a segunda asa
arrancas do corpo o que não é corpo:
toda liberdade vem do corte, toda finalidade vem do ato fatal de despedida.

A ilha treme, o chão quer abrir para te engolir de volta
Ele que é teu, é teu corpo e tua voz, ele que é você
Te desespera e agarra pelos gritos dos bugios, o eco da cachoeira nas cavernas que nunca te habitaram.
Mas o mar estala tuas ondas, e tua carne já não sabe mais da terra: reconhece o couro
o trabalho das mãos,
reconhece o sangue, o arranhão
reconhece o nome da ilha, escolhe um nome para o chão:
te tornas homem feito de coisa de gente
esquece a cada passo o peso da rocha.

Encontras, na praia, o barco que deixaste, intacto
Duzentos mil anos, ou mais...
De um só empurrão, teus braços de tronco enviam-no ao Mar
E teu corpo segue, de passos largos,
nas tuas pretas botas de couro,
debaixo do Sol.

A mim foi dado o presente, o angustiado dever, o papel esferográfico de te ver
daqui de cima da esfera que encerra e revolta-se
O ciclo que cumpro
Em torno do nada, acima do chão
Nada me deu que justifique conhecer-te daqui,
de onde nada se ouve, de onde nada se fala.
A tua história é esta, anjo da escuridão.

We have never been together, nor have we ever been apart.