terça-feira, 30 de outubro de 2018

quinze minutos

em momentos breves
imperceptíveis
que piscam entre uma xícara de café
e o próximo copo d'água
quando nada se vê debaixo da minha pele
rosada
naqueles instantes lisos
em que a minha alma corre perigo
solta num vazio de signos

(luzes coloridas acendem
apagam
a frase musical que não comunica)

nos momentos em que um pedaço
fundo e escuro dentro de mim,
velho como a arena de Verona,
flutua perdido no espaço

momento em que nenhuma palavra ancora
o lastro grosso do traço
(não do silêncio, mas do ar condicionado)
ruído branco, espesso, pálido

nesse quarto de hora em que não se espera nada
minha alma quieta está em perigo.

é de repente nessas horas que eu torço
por uma notícia tua.

não tem nem nome de saudade isso
é a ponta de um pé que desliza procurando
a areia do fundo
não chega nem a ser saudades isso
porque não é coisa que se mate:
é a mão que tateia o interruptor
é o pé no freio,
o corrimão na escada escura.

eu espero notícias tuas
que o mundo não acabe,
- como se espera a previsão do tempo -
que chegue a eleição
que não chova amanhã de manhã
que chova na cantareira

eu espero notícias tuas como espero a voz da vizinha
cantora lírica pela janela
como espero que não tenha acabado o azeite,
que volte o sinal do wi-fi.
As tuas notícias são menos notícias tuas
mais a prova dos nove:
a luz que bate no objeto e
carrega até os meus olhos,
o vento que me lembra que tenho pele.

domingo, 8 de abril de 2018

bem me quer

olho perdida para a página que não é lisa
já estão escritas todas as coisas que faltava te dizer

- você quer dizer algo...
- eu quero dizer algo?
- eu quero dizer algo

nos falta mesmo falar? só o que fazemos é escorrer palavras por essa pedra macia
seixo
seixo
seixo
pedra que rola o rio, a gente é feito dessa maciez dura, lisa, azul.

já estão escritas e ditas todas as coisas. ainda assim meus olhos não pregam. quero te dizer
a última palavra diante do portão de embarque
quero te dizer que existem livros nas bibliotecas do mundo
quero te dizer que existe um poema perfeito
que se esconde debaixo de um tronco comido pelo tempo
um cogumelo cor de laranja
alucinação e febre, o ápice de uma ideia que se esgueira para fora da fenda,
o jorro de vozes, alguém que canta em meio às buzinas
existe o poema, que eu não escrevi
existe o poema
o poema pulsa debaixo da terra
o poema escala arranha-céus
o poema venta
correntes de ar e avisos prévios
ordens de despejo
a senhora derrama pela janela as roupas de dentro de uma mala
uma criança segura uma margarida
e a rosa despetalada.

existe o poema que te espera num porto
que te espreita detrás do cinema
que leu teus dedos na biblioteca
que encontra as duas pintas de tinta no teu braço
existe o poema que te quer entre as páginas rasas
existe um poema que te espera

eu quero te dizer coisas que não se escreve
eu quero te dizer coisas mas o teclado escreve girafas
rinocerontes e séries de tv
eu quero te dizer que fique e vá embora sem olhar para trás

não saia nunca desse frame
esse frame em que estão dois olhos pretos, pequenos, dois planetas
o espaço entre aqui e a terra do nunca
não saia nunca desse segundo, não saia
não me perca na multidão dos próximos dias,
não se esqueça do pierrot molhado e vamos se embora ladeira
abaixo o mar que se estende à frente, não vá.
quero guardar a fotografia desses anos, quero falar até perder a voz
um telefone antigo, o bill murray, cigarros.

me rodeio de silêncios que vão formando um manto. de novo escuto a voz que me pede cale-
de novo preciso que a telefonista me confirme o código e ninguém atende
de novo estou no escuro de um corredor frio
eu estarei na asa do avião
eu serei a asa do avião
eu sou a núvem, eu sou o copo de água, eu sou a primeira folha amarela.

cartas
soluciona? precisa haver solução para esse silêncio que estou sentindo agora
precisa haver solução
cartas?
me escreva, desenha de giz no chão uma linha azul
estou segurando com as duas mãos um machado de saudades
quero te desejar a leveza de uma revoada na piazza Navona
mas só tenho nas mãos um machado
nada é leve, nada rasga o ar fora o grito
quero que você esqueça quero que me prometa o mundo

algo não pode ser o símbolo de si mesmo
é preciso que haja um símbolo para a partida
é preciso que haja um símbolo para que eu sobreviva a essa explosão que está acontecendo agora
é preciso que haja um símbolo para me salvar desse afogamento súbito, previsto por todas as profecias.
é preciso ler os cacos de vidro colorido
girar
girar
para você guardo o buquê das flores que se formam
mundo caquinho de vidro

respiro mais fundo do que o mergulhador
as velas estão içadas
levantem os braços, acenem
os lenços são gaivotas
eu vou em busca de um tesouro
você, busque o poema

é preciso que haja uma missão, é preciso um chamado, é o vento norte.
a saída é o herói
vamos separados,
e juntos
é preciso que o herói atravesse os três mundos,
antes a divina comédia do que o amor no sofá
eu tento te dizer mas o teclado faz girafas, rinocerontes,
e séries de tv

procure o poema que eu não escrevi
leia cada rusga de asfalto
encontre as palavras que pichei transparentes para te esperar

hoje eu vejo a minha vida toda nos teus olhos.