quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Morar demora

Morar demora.
primeiro a casa, que se habita aos poucos: a casa cheirando a livro novo, cheiro que se vai esquecendo à medida da leitura das páginas. O sabor dos cantos e as manchas na parede que se parecem com lagartos e dinossauros. O papel de presente rasgado de cada abrir da porta de entrada. A novidade da casa é sedutora para uma pessoa que sempre disse: meu lugar mais confortável é a estrada. Não sinto mais o cheiro da casa, como não sinto o meu cheiro, mas gosto de apertar as narinas contra meu braço direito e me lembrar que também tenho novidade. 
Morar, ainda, demora, mesmo quando já se mora a casa (não se mora na, nem em, assim como não se namora em alguém: se namora e se mora a casa). Mas mesmo quando já se mora a casa, até mesmo o quintal (com sua particular translação, as linhas do sol de mês a mês que começam por acordar o pé de manhã e vão subindo para a cabeça, com seus grilos que se tornam cigarras e suas acerolas que se tornam ipê, e novamente acerola), ainda não se mora. Não completamente. Morar demora. É preciso então morar aos poucos a rua, o latido do cão do vizinho, que parece grande mas é pequena, que conversa com o nosso como conversamos com o alecrim, é preciso morar o mercado, a praça, tudo onde se come onde se bebe, a tua presença (morena morena). Como se conhece um grande amor, é preciso conhecer o mercado, as cores dos caminhos, o moço que vende mel na frente do banco, e o melhor café. Morar o bairro, ou se chama cidade isso onde moro? Onde estou morando, com cuidado, cautela, com a contra-mão da voracidade da cidade antiga se chama bairro, mas é a minha cidade. Quando digo minha já a perco, como perco tudo o que quero ter, porque morar, como namorar, não é ter. Morar a universidade foi reencontro, continuidade do flerte constante do nosso apaixonado relacionamento à distância. A cidade ainda me olha com olhos de bicho meio domesticado meio arisco, com os quase amigos, os vens e vais. Morar tem demorado. Sem pressa, no tempo do bastante. Essa semana, depois de floridas as sibipirunas escondidas, choveu. Chove pouco aqui. Frases que eu não posso dizer, porque não te conheço. Nosso amor é novo, desde sempre. Essa semana choveu e deitaram-se as flores das sibipirunas pelo chão. As árvores de ovos mexidos. Essa semana eu fui encontrando os caminhos, esbarrando os semi-desconhecidos, os rostos que pairam por aqui, escutando os sons que aqui se tocam, trabalhando no que aqui se trabalha, com pessoas que aqui estão, e fazem aos poucos caminhos leves em mim. Essa semana eu vi os chãos de ovos mexidos que penteavam as ruas das minhas antigas casas. Essa semana eu tenho sentido, de rosto meio corado, que quero dizer, como quem pergunta pela primeira vez se posso te chamar de namorado, que tenho morado, estou morando em Barão Geraldo.