sábado, 13 de novembro de 2010

só pra não esquecer

- Qual foi a última vez que você chorou?

- Ontem.
- É. Ontem.

- Ah que bom, que luxo! É, santinha, a mulher é um luxo. Já ouviu falar de John Lennon?

sorrio.
-Já.

-Entre as muitas coisas que ele fez, certa vez foi ao psicólogo pra reaprender a chorar! Verdade, to te contando!

Ele se chama Verdi, e tem os olhos mais bonitos da cidade de São Paulo. Ele teve um aneurisma ouvindo Jimi Hendrix e fumando um baseado, já foi exilado no Chile e fala da vista da Amazônia, que teve a sorte de ver porque voltava num avião dos correios. Se formou na São Francisco. Seu filho mais novo nasceu no dia 20 de Dezembro de 1987. Se surpreende várias vezes com o fato que nós duas nascemos em 87. Fala do filho, repete. Sorri muito, e xinga de boca cheia qualquer coisa que se trate do país. Quer que ouçamos as manchetes que lê incessantemente dos muitos jornais que carrega. Lê com muita rapidez.

Nos chama de "santinha" e quando peço pra tirar uma fotografia quer vê-la perguntando "Ficou simpática? Não estou com muita cara de mendigo?" ri.

Aponta a minha bolsa e diz "Essa bananinha aí... conhece um cara chamado Lou Reed?"

Repete muitas vezes que a mulher decidiu "dar um pé nesse negócio de filhos". Repete que a mulher da um pé no casamento também. Pede que eu lave os pés da minha mãe, diz que ela "ficou desse tamanho, te deu leite e construiu o teu caráter". Depois fala da sua mãe: "Minha mãe nasceu na Italia, só falava da Italia, nasceu no Lago di Como. Ah eu já disse isso? Hoje? Já conversamos disso?" Conta que ela teve um nódulo no peito "Os médicos ´nhac´. Passou pro outro lado. O médico ´nhac´. Passou pro útero, o médico ´nhac´. Passou pra a coluna. É."
Aponta a garotinha de vermelho encostada. Aponta a mãe, diz que aquele é seu maior tesouro, que a mãe é um anjo. Aponta todos que passam. "Que luxo. olha a menina com o menino. Será que é namorado dela? Olha como ela puxa ele, você viu?" ri. "É, deve ser o namoradinho dela. Olha que luxo. Será que eles vão ser felizes?"

"Quem fica sozinho é poste"
"Eu fico sozinha muitas vezes. Não sou poste, não..." sorrio "É eu também não"
Ele ri. "É... eu também não sou!"

"Olha a tristeza personificada vindo aí. Olha como ela é elegante. Você viu a curva que a menina faz com os pés? Será que ela faz uma arte marcial? Que luxo né, santinha..."
"A vida é isso, entrar nesse lugar e comer esse monte de porcarias, caras, essas bostas todas, e depois sai todo mundo aí com essa cara de triste. Olha, todo mundo triste."

O pensamento dele é uma câmera. Ele pinta as cenas como quer. O mundo fica triste, e imediatamente depois, muito feliz. As crianças... ele ri. Ele sorri o tempo todo, inclusive enquanto fala mal de tudo o que encontra pelos jornais.

Pergunta pra ela se ja roubou alguma coisa. Ela diz que sim. Ele aperta suas mãos, parabenizando.
Depois me diz: "Você tem religião?"
"não"
Aperta minhas mãos orgulhoso.
"E você?"
"Também não."
Mais orgulhoso ainda, aperta as mãos dela também. Quer nos mostrar tudo. Se pudesse nos mostraria tudo, nos diria tudo.

Ele fala que foi morar com seu pai quando teve o aneurisma, que o hospital foi destruido e com ele todos os arquivos. Conta da ex-mulher que levou à Argentina não sei quantos quilos de cocaina e comprou "um apê imenso nos jardins". Fala que os filhos deviam procurá-lo. Fala de ser mãe. Fala de si como tendo tido "a experiência da maternidade quatro vezes".

"Você quer ser mãe?"
"Gostaria, sim"
"É uma revolução. A mulher faz uma revolução, ela tem que querer, tem que vir dela, ela faz uma revolução. Ela escolhe então um homem que admire. Basta isso, não precisa ser marido, namorado. Ela tem que admirar. Porque ela que vai fazer o resto. Ela que vai limpar, cuidar, alimentar, ela que vai criar, ela que vai educar"
Pergunto dele como pai. Diz "Sou uma bosta. Uma bosta fedida. Sou ausente"

"Você tem a letra igual à do meu pai"
"verdade, filhinha?"
"Sim!"
"Seu pai é vivo?"
"Sim"
"Você é fã dele?"
"Às vezes"
"É a mulher é assim. às vezes. Você admira ele?"
"Sim!"
"Então está ótimo!"

Falou que o suco de laranja estava de fato muito saboroso. O suco de laranja estava mesmo muito saboroso. Ele sabe olhar, ele olha tudo. Ele se esquece, e se lembra. Eu e ela junto. Quis brindar. Brindamos a ela, que telefonava la fora. Contei aos dois o conto de fadas do Urso Branco Rei Valemão. Ele achou lindo. Eles acharam lindo.

Conversamos. Nós estavamos conversando. Não estavamos ouvindo nem ajudando, nem tentando nem permitindo nem querendo. Gostaria de encontra-lo. Gostaria de fazer uma visita à sua casa, que ele ainda tem, diz "por sorte", porque era de seu pai. Gostaria de pedir que ele não usasse os 5 reais que emprestei pra comprar outra pedra de craque... mas quem sou eu? Quem sou eu pra querer saber que ele não devia comprar uma pedra de craque? Quem sou eu pra achar que não é melhor ele comprar outra pedra de craque. Eu sei lá. Quem sou eu? Eu só queria que puedessemos nos ver de novo. Afeto nessa cidade parece passar cada vez mais longe das festas e das brejas. Afeto nessa cidade parece passar mais perto de lá. Insisti pra que ele fosse à abertura da mostra de arte do sesc na quinta. Adoraria saber o que ele vai achar das obras, das performances. Gostaria de ver com ele o filme do Bergman do qual ele falou tão bem, como se ele fosse meu tio, meu vô, meu pai.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

lento aprendizado da arte de contradizer-me

Me contradisse. infinitamentesemsairdolugar no último mês. Estou como quem está em outro país. Com a mesma língua. Talvez o mesmo país, em outro tempo. Talvez o mesmo país, ontem.

Quis o inexistente pelo valor da utopia, para em segundos pesadamente perceber o valor da existência. A realidade (deste exato momento que se constrói de muitos) é a impossibilidade da construção sem a existência prévia. Existe uma presença física daquilo que HÁ. Que utopia nem construção se permite sem. Existência daquilo que é Existente, o Ser. "Being is prior to nothing"
Estou feliz por entrar em contradição. Piso-a como um colchão.

"quer minha ´calma´ tranquilize ou irrite, nunca ninguém a questiona, ninguém pergunta do que ela é feita. Ora, ela é feita disto: de uma consciência imediata e precisa dos mínimos movimentos de afeto que tomam conta d meu corpo"

Pequeno apanhado de verdades absolutas recentemente passadas:

25/10
Na chuva chorar não é exclusão, é movimento de massas. coerente.
De repente a imagem da blusa dela me externalizava perfeitamente: as mesmas cores e dois tecidos. Linhas retas, listras versus flores. Não consigo unir dois lados de mim, que lutam ferozes, me mantendo derrotadamente inativa.
As baratas estão todas vivas.
Eu desisti. Dos dois caminhos? Onde eu enfio as flores? Como seguro as listras?
Eu e minha alma não nos desistimos, nem vencida está a força de um dos braços. Ambas sentadas sobre os degraus, olham cansadas a floresta no chão da cozinha. Não querem mais se olhar nos olhos. Acaricio com um pouco de ódio os cabelos dela, molhados de lágrimas: ela não tem culpa de nada. Minha alma infante deita a cabeça cansada sobre minhas coxas duras, e me molha de dor salgada. Ela sabe que não mudarei. Ela sabe que nossa paz é impossivel. Ela me ama, mais que uma irmã. Eu a amo com ódio da sua fraqueza. Ela me ama com dor pela minha força. Minha leveza, e o peso dela. Minhas estradas, e os sonhos dela...

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(recortando o auto-método da dedução frequencial psicanalizado, resumo a segunda verdade absoluta momentânea ao que se segue)

Sempre te achei uma montanha frágil

Quando ia para casa, deparei-me com uma sequência de faróis amarelos. Quebrados: incansavelmente, insistentemente e estagnadamente amarelos.
O sol, a bile.
A tua presença é um ótimo artifício de fuga para meus pensamentos. O melhor jeito de fugir de você é estando ao seu lado.

E tenho dito. amanhã, direi exatamente o oposto. Assim espero.