quinta-feira, 4 de abril de 2013

poucas linhas sobre matar baratas

Se já não tivesse o assunto sido plenamente e profundamente explorado pelo menos em A Quinta História e A Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector, eu sentiria a necessidade de, tímida e modestamente contar-lhes sobre como assassinei em desespero agônico a rainha das baratas, a maior e mais vil das coisas sem nome e sem precedentes. Seria um prazer acreditar em ameaças reais, mas a causa verdadeira e mais pura do meu asco e pânico me é -quase inteiramente- desconhecida. Talvez a rapidez: me assombra a rapidez com a qual assumem seu papel de indesejadas e consequentemente fugitivas por excelência. Ao contrário de tantos insetos e aracnídeos, não esperam o julgamento a ser feito: velhas de guerra. A lentidão talvez permitisse segundos olhares, mas eu pisco e já é absoluta a percepção que sou predestinada a te tirar a vida.

Se fosse ainda em algum nível necessário dizer qualquer palavra além das mais perfeitas obras existentes a respeito do que se trava ali, eu lhes contaria dos minutos depois do horror, nua dentro do banheiro (onde me preparava para lavar o suor que me escorrera o corpo, junto a uma cãibra nos abdomens que já bem conheço). Porque eu segurava a vassoura com olhar trêmulo e foco de caçador absorto e burro, eat or be eaten, porque eu seria absorvida e compreendida inteira por aquela criatura, se a deixasse vir na minha direção. Pressionava a vassoura e deixava milimetricamente espaços para que se aproximasse mais do local ideal para a minha lança. Ridícula cena de filme holliwoodiano de terror, o monstro que vive e revive a tiros na testa. Bicho imortal, maldito bicho imortal que esfrega no chão um sangue escuro (não vi nada da massa branca de Clarice), espalha pedaços de pernas peludas e finas e ainda assim quer e vai correr.

Se não tivesse sido dito já tudo o que se deve dizer a respeito de nós, delas, de nós e nosso horror divino, eu lhes contaria dos minutos depois quando, sentada nua sobre a privada do banheiro, via os pelos abaixo do meu umbigo, um pouco mais grossos e escuros, que começavam a brotar, e descendo um pouco mais, acima do púbis, pequenos pontos e protuberâncias escuras que crescem duros depois de semanas da última cera: os que eu quero ter e não quero jamais ter tido. Espremi ali um pelo encravado, e vi se desdobrar nos meus dedos aquela finura marrom que se parece tão perfeitamente com o pelo da perna de uma barata. E todos os pelos retorcidos mais abaixo, e aquele crescimento que rodeia meu sexo se impondo e sendo, intensamente, uma imensa barata. São todos pelos e antenas de baratas. Seria preciso, caso não fosse absolutamente desnecessário, contar que soube do mais profundo de  minha calma de Khali, ser feito meu copro de centenas de baratas mortas. Milhões em vala comum. Todas as baratas que morreram para que eu pudesse, fingida, existir.