as chuvas que começaram,
começaram com ela.
ela não avisou
o metálico cinza anterior acostumamos todos a subestimar
ela duraria poucos minutos, deixaria as plantas com sede
os corpos desrespeitosamente quentes.
não foi o que aconteceu.
em algum lugar, eu ouvi uma sirene:
descobri que era preciso correr
não de, mas para.
porque a rara oportunidade se revelava.
é quase impossível ter motivos para correr,
bons motivos para desfazer-se.
eu precisava, quase desesperadamente,
de água.
fiz o convite e esqueci de ouvir a resposta, era preciso e precioso tomá-la inteira, e só.
ela foi certeira em sua decisão: não passam daqui as camadas secas de cal
não passam daqui as desculpas,
não passam daqui as muitas vozes que não dizem nada.
ela me silenciou, num sorriso descansado e lépido:
"eu quero ir para fora de todas as portas."
foi então que começou
lavaram-se, de início, os brilhos especulares dos prédios mais altos.
burocratas, secretários, as businesswomen com seus terninhos e os homens pendurados em andaimes para limpar vidros
olhavam espantados, de papéis e celulares nas mãos, a devastação das suas janelas
que aos poucos tornavam-se calamidosamente transparentes.
depois as pequenas casas, das menores vilas, receberam as gotas baldes
e se despiram despercebidas, das suas cores mais vivas
amarelas, vermelhas, esbranquiçavam
deixaram de saber coisas antigas, incutidas repetidas e restritas
silenciaram a bandeira de ser ou não ser.
os nomes das ruas também foram lavados
levados a rodo na enxurrada
ladeira abaixo
As roupas de todos os que passavam, grudaram molhadas
e, afinando,
mostraram grandes fomes, pequenos amores, maiores dúvidas
o meu vestido tirou-se do calor cansado e me devolveu umas gotas alegres de ar,
as vontades de estar e de não estar, a calma que têm as crianças que correm
só por correr, não por pressa alguma.
a maquiagem de todas as mulheres escorreu.
eu, que não uso maquiagem, tive que ver escorrer a camada de achismos de cima da pele
e aquela, a mais fina discreta indizível rasteira, a pele primeira.
fiquei só os olhos
azulando uma chuva tão real.
de lá o verde dos não-campos em que passeio
sustentando-se em sua cor, receberam um furor branco
tough love
para as camadas que a chuva não deu conta, as pedras
de gelo branco desceram velozes e estalavam saltitantes
tingindo de branco o que não se dissolvia.
se não será suave, será no corte.
eu sorri durante o processo, não tinha entendido bem
a que vinha tanta água
a que vinham rasgos do céu.
cessada a chuva que desfizera por fim todas as máscaras,
eu alegre e inocente no meu ar agora respirável,
encontrei dois homens.
por causa dela, não existia mais cal, terra seca, cor nas paredes,
cílios sobre os olhos, meias palavras.
o primeiro provou apenas que não existia.
o segundo
o segundo.
deslizamos sem muita consciência
para dentro de uma terra escura que a chuva abriu
para baixo de mundos rasos e ensolarados, onde se pode dizer de si.
para mundos anteriores aos mundos, onde as forças correm de dentro dos peixes.
viramos, sonâmbulos, chaves desconhecidas,
atravessamos rios sem nome, e falamos idiomas esquecidos.
comemos seis sementes de romã.
e depois de quase sufocar nas palavras sob as quais tentamos nos esconder,
e de tê-las transformadas de escudos em espadas, e de espadas em forcas, e de forcas em laços e braços
talvez até mesmo macios,
encontramos o caminho de volta.
voltamos em silêncio.
...mas há cânticos antigos que dizem de tudo isso,
eu queria apenas falar da chuva.