segunda-feira, 28 de março de 2016

morte

tem sempre alguém que está morrendo. no mundo, tem sempre alguém morrendo. morre muita gente no mundo, muita gente diria. Nasce também muita gente no mundo. Mas às vezes tem a notícia de alguém que está morrendo. Alguém que estava vivo, alguém que apareceu na nossa história está morrendo. Alguém que a gente lembra da voz, alguém que a gente conhece o sotaque, o jeito do sorriso, a posição dos dentes, o jeito que gosta das coisas, a arte que fez. Alguém que estava vivo está morrendo. A voz ecoa ainda dentro da gente, e a pessoa morre fora da gente. Perdemos, nós perdemos, como uma partida do jogo: time, perdemos essa. A gente para, respira, aperta e esguicha sal, porque perdemos uma pessoa. Não precisa medir a proximidade, sim, a dor é maior quanto mais perto do ponto na reta: mas é morte, apaga uma coisa que estava acesa, silencia, seca um espaço, some uma cor leve do céu. às vezes choramos por pessoas que não conhecíamos: anthony marignetti, david bowie, lou reed. mas a arte da pessoa é a pessoa misturada com outras coisas, e a gente chora porque o mundo não tem mais uma coisa que tinha antes. antes no mundo existia uma pessoa chamada lou reed que fez um disco que me faz chorar para os dois amigos dele que morreram de câncer, que costura o luto dos outros, que faz poema com a guitarra e canta a cidade de nova york como precisava alguém cantar. depois daquele dia, não tinha mais isso no mundo. perdemos, dá aqui tua mão, moça do meu lado na fila do mercado, me da a mão, dono da papelaria, me dá a mão que não tem mais no mundo uma coisa que tinha antes, e que era tão bonita, e que eu não conhecendo eu conheço uma pegada, e eu vejo a cor que desaparece entre as outras. eu imagino, e imaginando a gente vê.

lou reed morreu dia 27 de outubro de 2013. eu fui para ny na semana seguinte, deitei numa cama num quarto alugado de um apartamento e escutei o New York olhando pro teto, chorando de vez em quando, colorindo nos espaços em branco entre as letras, imaginando o espaço possível que ele me deu de presente, e entendendo que a voz gravada entrando pelos meus ouvidos não existia mais. agradeci a alguns deuses pelo privilégio de tê-lo visto tocar ao vivo uma vez um som tão lindo e distante da linguagem em que conversávamos, eu e o querido amigo sentado ao meu lado. me lembro de ter escrito algo de lapis no escuro no panfleto do show no meio de uma música, uma frase que devia um dia virar um poema. não sei mais a frase, não escrevi o poema. Ontem procurava um cd para ouvir na estrada e uma coincidência colocou o Magic and Loss na minha mão. Outro disco do Lou Reed, bem posterior ao New York. O Magic and Loss foi feito para dois amigos dele que morreram de câncer, naquele formato poesia-punk dele em que frases dissonantemente diretas e anti-sentimentais atravessam mares de sons doloridos e fundos de um azul ou preto, cause "the coal black sea waits forever", ou cortes de metáfora estilhaçam um aparentemente inocente rockzinho animado. Pensei naquela guitarra que pra mim sempre pareceu poesia em língua estrangeira. Poesia numa língua antiga que não falo, mas que, muitos anos atrás, originou a minha (talvez no ouvido dos meus pais, recém apaixonados de jaquetas de couro e cabelos raspados aos vintepoucos anos). Pensei naqueles punk poems regados a melodia do magic and loss e dos amigos dele que teriam escutado de novo essas canções depois da morte dele, ressignificando e mudando personagens de lugar: agora somos nós that didn't get a chance to say goodbye. Pensei nos lutos. Pensei na Mônica também.

Hoje de manhã minha mãe me contou que a Mônica estava morrendo, já estava no hospital há alguns dias, e não havia mais muito o que fazer. As histórias de câncer se repetem. Lembrei da Jane, que visitamos todos os últimos dias. Hoje a Mônica morreu em um hospital em Porto Alegre. And no I didn't get a chance to say goodbye. A história não é minha, quase tanto quanto não é minha a morte do Lou Reed. Mas o luto dele pelos amigos no magic and loss, o luto nosso por ele e por sua guitarra escritora de poemas faz trança no ar com a Mônica e sua risada, tudo o que ela construiu, seus filmes, seus amigos, seu jeito de dizer o nome das pessoas. Gostava muito do seu sotaque. Gostava de muitas coisas. A morte nos outros é a morte na gente também, a lembrança daquilo que tece o chão onde pisamos: "there's a bit of magic in everything. and then some loss to even things out". Pensamos que temos que ir no médico, que temos que dizer que nos amamos, que temos que ser mais verdadeiros, pensamos em desespero que queremos viver pra sempre. Não, eu não acho que sejamos egoístas: eu acho que a morte é uma rede, e que os pontos de encontro os nós são feitos são nós de pensar nos outros e de pensar em nós. Quando anthony morreu eu chorei e tive muita certeza de que era preciso ser verdadeira com o que eu sentia: não posso morrer sem viver isso. eu chorei pela perda da pessoa que não conheço, com quem troquei três mensagens, mas que escreveu coisas belas e disse coisas lindas a uma pessoa que escreveu outras coisas belas que me fazem ser quem eu sou. a rede. A rede não é projeção da gente no mundo: a rede é a gente no mundo. Eu amo minha invenção dessas pessoas que não é menos real que a minha lembrança da Mônica escalando a pedra nãolembroonome e a gente acenando lá embaixo, e a Mônica pra quem eu dei chiclete sabor hortelã porque tinha a piada no filme, e ela me olhava e sorria e eu achava que ela estava feliz porque tinha uma criança no meio daquela bagunça toda de pós-produção. Amor é amor, e se mistura com imaginação, com dor, com o que a gente quer e não quer para nós. Tive muito medo de morrer hoje. Tive muito medo de perder as pessoas que amo hoje. Chorei o choro da amiga e do marido que estão agora se preparando para ir para o enterro amanhã e que vão aprender a viver sem um pedaço deles para sempre. Nós perdemos, time, hoje nós perdemos mais uma pessoa. Mais um pedaço de sol, de cor. 

Pensei também ontem que, por alguma sorte minha, a maioria das pessoas que perdi estão vivas. A maioria das pessoas que perdi não morreram, perdi pra outras coisas, mas não pra morte. Perdi algumas pessoas para a morte sim: a Doni quando criança, quando comecei a tentar entender o que era alguém deixar de existir. O Florestan na adolescência, dia 20 de Outubro de 2003, perto do dia do lou reed, 10 anos antes. O Florestan que está em todos os pores do sol que eu olhar pro resto da minha vida, e que tinha sardas e cachos, e sim, me lembro da voz dele. E ontem também tocou Babe Im Gonna Leave You na estrada. A Jane cantando "se eu quiser falar com deus" numa clareira de mundo que se formou em torno para ouvir a voz mais profunda numa noite de grilos, e deixou pra nós a menina que me sabe mais que todos os seres: the angel on my bike. Perdi meu vô, meu "nonno", que fazia piadas e me leu a odisséia na infância, dolorido e antigo, um conto inacabado na gaveta desde então e um casulo da lagarta que encontramos na noite anterior na hortelã. Tudo tece metáforas, e é nelas que a gente se segura. Todas as pessoas viram histórias: não a história de vida delas só, mas a biblioteca imensa de histórias que se entrecruzam nas memórias dos outros, a gente dá cores e tons, e as pessoas ficam escritas no mundo, em milhões de versões. Ainda assim, a maioria das pessoas que eu perdi está viva. Isso, pensei, isso deveria bastar. Não, eu não vou, mesmo que me tente de leve no auge de alguns choros de solavanco, pegar o telefone e tentar reatar cortes que não têm linha, não por isso. Mas perder alguém para a vida não é como perder alguém para a morte. As pessoas que eu perdi para a vida, para as mudanças de cada um, para os momentos, para as distâncias, para os erros mútuos ou acertos, para os desencontros puros, essas pessoas o mundo ainda tem. Outras pessoas têm por perto as pessoas que eu perdi, e isso, insisto, isso deverá um dia me bastar. Me alegra agora saber que vocês existem. Que em algum lugar em algum canto vocês cantam, riem, escrevem, dançam, pensam, inventam e fazem vento e garoa macia para a vida de outras pessoas. Vocês existem, que alegria. As pessoas que eu perdi pra vida o mundo não perdeu. Isso deve bastar.

Quando aos outros, quanto à Mônica, à Jane, ao Nonno, ao Anthony, ao Lou Reed, o Bowie, o Florestan, a Doni. Quando a vocês: o mundo se encarrega de transformá-los em arte, tecida e trançada nas memórias e desenhos daqui. O mundo se encarrega, e eu faço meus votos: rego as flores e os pores do sol todos os dias pela manhã, e agradeço ao me deitar. Fiquem em palavras e amor. Vão em paz. 

1 comentário:

  1. obrigada, filha, por essas palavras que me ajudam a viver essa perda de ontem, de hoje... a Mô.

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