Minha amiga Mel tem um blog super legal chamado Repete Roupa. Lá ela está contando sobre essa experiência de repetir uma peça de roupa por semana ao longo de um ano, além de alguns pensamentos sobre consumo minimalista e outras paradas. Recentemente ela postou um texto sobre esse lance de body-positivity, e como talvez seja uma pressão não muito positiva (é...) essa de termos de “amar nossos corpos”. A ideia dela, bem resumida (vão ler lá: http://repeteroupa.blogspot.com.br/2017/10/semana-41-por-favor-parem-de-falar-pra.html) é defender uma certa neutralidade, uma tranquilidade maior ao lidar com o corpo, sem tantos julgamentos de positivo ou negativo, mais um “esse aqui é meu corpo, cada um tem um e bora lá, ta tudo certo”. Achei super bacana o texto da Mel, e ele me inspirou a escrever um também, não porque eu concordasse ou discordasse dela, mas porque a pergunta ressoou pra mim: Será que eu amo meu corpo? Será que eu acho importante amar o meu corpo?
A resposta imediata que surgiu na minha cabeça como momento de mais verdadeiro amor pelo meu corpo foi o seguinte: Eu estava na fase mais deprê da minha vida, mal mesmo. E a fase mais deprê da minha vida não foi aos 14 quando eu ouvia Nirvana no escuro no quarto a tarde toda, tá? Isso era saúde. Foi uma fase em que poucas pessoas sabiam que eu estava passando por uma crise bastante profunda de identidade (inclusive sexual), amorosa, de culpa, e muitos etcs. Bem, nessa fase eu parei de comer direito, e no meio disso também tive alguma gripe pesada ou infecção urinário ou algum cazzo assim que me fez tomar remédio. O remédio me deu uma diarréia dos diabos, e além de não comer eu passei uma semana em que, digamos, o pouco que eu comia também não me alimentava. Bem, o momento que me veio à mente foi depois dessa semana – ótima – . Eu estava pelada para entrar no banho e olhei minhas coxas. Elas estava finas. Eu nunca tive coxas finas. Eu nunca achei elas particularmente bonitas, e em alguns momentos mais cheinha achei feias mesmo. Mas nesse momento eu olhei as minhas coxas e tive a impressão de que elas estavam sumindo, de que eu estava mesmo aos poucos desaparecendo no ar. A minha carne (representada aqui pelas minhas coxas) diminuía e eu deixava de ser eu. Eu chorei muito olhando pra elas. Nesse dia eu tive uma certeza muito grande de que amava meu corpo. Eu queria ele aqui, inteiro, não queria me perder. Não era sobre achar minhas coxas grossas bonitas e perder essa beleza estética, era sobre um amor que está muito colado a existir: amar estar viva mesmo. Esse estar viva estava diretamente ligado ao meu corpo e até ao seu formato, a forma como eu o reconheço e, portanto, me reconheço. Meu maior momento de “amor ao meu corpo” tratava-se de amar ter carne e osso e querer ser eu, e poder tocar numa existência sólida que me define e me aterra.
Lembrando disso, a partir do texto da Mel, comecei a refletir sobre esse amor ao próprio corpo. Será que amar o meu corpo tem que significar achar ele belo? O momento mais verdadeiro de amor ao meu corpo teve pouco a ver com beleza. Talvez outros momentos em que me achei bela estejam relacionados a amor, mas nenhum deles é tão marcante. Tenho certeza que construímos socialmente uma relação entre amor e beleza, e não pretendo dizer que ela seja necessariamente ruim. Fico lembrando de amores de amizade e de amores românticos por pessoas que não considerava especialmente “belas”, e o quanto a beleza delas crescia nos meus olhos quanto mais eu as amava. Então na minha experiência o amor puxa a beleza estética, facilita, abre a porta para ela. Mas será que o contrário é verdade? Nas minhas experiências de amor pelos outros acho que não. Não acho que eu tenha passado a amar alguém mais pela sua beleza. Aí tesão e admiração podem ser puxados por esse bonde da beleza, mas amor mesmo, acho que não. De outro lado esse texto também não vem pra criticar os projetos das migas que estão buscando na beleza estética feminina (com desenho, fotografia, etc) um gancho pra algum tipo de salto de auto-estima (como a própria Melzinha fala indiretamente no post dela). Vejo uma pá de amiga encontrando um sentido importante pra sua relação com o corpo a partir de uma parada estética. Eu estudo poesia e ensino teatro: longe, muito longe de mim querer tirar o valor da estética das nossas vidas. Beleza é um troço importante, poderoso. Mas perigoso também, né? Como tudo isso que é grande, alimenta e consome. É uma reflexão que não tem intenção de normatividade, mas de conversa (será que é possível fazer isso na internet? A gente vai tentando). E a conversa é com a Mel e com as leitoras da Mel, e com as minhas amigas e tal.
Não sei se consigo curtir muito essa ideia da neutralidade, porque acho essa palavra quase impossível. Mas acho que a gente tem uma certa tendência a ver nossos corpos como algo separado de nós, uma posse, um objeto que temos e ao qual reagimos. Nesse episódio das coxas e da sensação de desaparecer eu senti que eu e meu corpo éramos uma coisa só. E eu amo essa coisa. Mas esse amor muitas vezes está, ou pode estar, lá no seu íntimo, bastante descolado do juízo estético. E também não é todo dia que a gente se ama. Aliás, não é a maior parte do tempo, né. E isso vai muito além do corpo. Mas se eu acho que a gente tem que se amar? Acho, bicho. Porque não entendo esse lance de se amar como uma ausência de auto-crítica, nem um lugar de arrogância. Mas concordo com a Mel quando ela questiona essa “body-positivity” que nos exige agora que “ao invés de” odiar nossos corpos e nos julgarmos feias invertamos o jogo e nos julguemos divas belíssimas, esculturas de perfeição e beleza. Esse bonito em resposta ao feio talvez deva mesmo ser repensado, porque ele pode repetir um tipo de relação similar, não é? Mas por quê amar meu corpo deve querer dizer achar ele bonito? Eu posso amar meu corpo porque ele sou eu e estou teclando esse texto agora e olhando para essa tela, e sentindo fome, e gosto de café na boca, e só experiencio a vida de dentro dele. Amar meu corpo também é amar as ideias que meu cérebro tem, e a minha imaginação que me dá prazer e que gera coisas belas. E aí a beleza voltou, pela porta dos fundos, sorrateira. Não tem hierarquia dessas belezas, eu creio, mas que a gente está acostumada a resumir beleza à superfície do espelho, ah, estamos né? E o amor não precisa ser belo não. Outra: é incrível ter uma experiência estética de beleza num lugar q não esperamos, tipo olhar as gotas escorrendo em um copo de água e pensar “eita que coisa linda” é incomum e prazeroso, mas a gente não pega o copo de água pra beber e pensa “ai, copo, você não tá tão bonito assim hoje, preciso te deixar o mais belo possível”, pensa? Tá, a gente gosta de ter copos bonitos também, mas vocês entenderam meu ponto. A exigência de beleza com o corpo é exaustiva. Talvez dê pra amar sem exigir tanto prazer estético constante.
No fundo o que eu percebi refletindo sobre o texto da Mel é que o amor pelo meu próprio corpo que mais me resgatou e me resguardou, o que mais me fez bem, foi um amor bem primário de reconhecimento de mim. Para mim estar viva é estar num corpo, ser um corpo, até porque não estou nadinha interessada nesse papo de iluminação e ascender ao Nirvana (reparem no segundo Nirvana do texto), mas na existência plena de comer e dormir e ler e falar e cortar a unha do pé, e pesquisar poesia, e trocar ideia com as amigas e pisar no chão. Existir assim é mais do que com um corpo que se faz, é sendo um corpo. Um corpo que mais do que ter eu vivo, e que eu amo sim, não necessariamente porque o admiro esteticamente, mas porque sinto que amor é força motriz de estar aqui viva. (Aliás posso dizer que eu amo cada um dos meus pelos, e continuo achando eles meio feios na verdade.)
A Regina Spektor resumiria assim: “I have a perfect body, but sometimes I forget. I have a perfect body cause my eyelashes catch my sweat, yes they do.”