inverno novaiorquino
os navios no espaço carregam correntezas
ou a próxima neve (sempre difícil de ancorar)
(como se diz chover, só que para neve?
como se diz quando está chovendo neve?, ela me perguntou)
eu não sei escrever de memória
só escrevo o último sabor
antes de escovar os dentes.
borro o caderno de esmalte de tanta impaciência,
como uma criancinha
e gosto de dar mordidas grandes em punhados de neve.
Lá o desconforto é menos largo,
a meia-calça aperta: dentro de casa é seco,
fora de casa é frio.
gosto do frio, mas sinto dores como uma velha.
(aqui não. aqui tem acerolas e o escritório é um
forno. quando tento me lembrar,
coço no ar as patas de um verso mal escrito)
tinha o amor a poucas esquinas
aquele que está sempre perto e longe demais,
como o cartão postal
que chega em casa depois de mim,
Vem me receber na porta
com olhos de cachorro velho
e flocos de neve já sem cheiro.
me pergunto se isso de exercitar a caneta serve mesmo pra alguma coisa
me pergunto se é possível escrever sobre qualquer
outra coisa, que não essa paixão antiga
de enlatado, esse ready-made
luzinha que pisca num farol a cada seis meses
(o farol que demora seis meses para girar
poderia ser um conto, mas não será)
me pergunto se aquele abraço,
ou aquele, ou aquele outro,
valem alguma coisa, no rosto da página seguinte.
escrevo sempre mais uma linha, pra ver se a próxima
descongela a anterior:
passo quarenta minutos com a perna debaixo da água quente,
faço massagem com o sabonete,
desempedro minhas coxas de velha, faço alongamentos,
procuro deixar o músculo vivo, hidratar a dobra.
Bertha Young aposentada,
ou a criança trancada no armário da prosa de Dickinson.
O que é, afinal, uma mulher adulta?