segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Domindo Magro

Equilíbrio de corpos humanos sobre comida. Muita comida.

-Senta aí que eu te explico. Nos trópicos, Natal não faz o menor sentido. E não faça essa cara de choro que bonitinha você ainda é criança. Passou. Pra mim passou faz tempo. Uns quase dois anos? Não talvez só um ano. Talvez 70. Sim, eu te explico. Não existe motivo racional ou irracional pra esse monte de luzinha ridícula. Não, espera, ok, as luzinhas amarelas não são tão patéticas assim. Mas não tem nada que pareça mais com um funeral de filme de terror do que a merda das árvores do Trianom com aquelas luzinhas azuis. Azuis, porra, por quê?! Azul não tem porra nenhuma a ver com essa porra toda. Alias, luzinha vermelha em árvore no meio da Faria Lima é cenário perfeito de prum filme tipo damianofilhododemodois dos anos 80. E pra falar a verdade seria mais legal. Desculpa, você ta um pouco chocada eu sei você esperava que eu dissesse que sinto um carinho especial por aquelas noites ridículas cheias de peru e aquele seu avô do outro lado da família que era delegado ou então as salas vazias onde dá pra ouvir bem demais as vozes que vêm das outras salas. Eu sempre fiquei nessas salas até achar que ia chorar de tanto nojo, ou de tanta falta de motivo pra chorar. Não, eu ia te explicar com motivos racionais, por a mais b, escuta: Natal só faz sentido em país em que é inverno, entende? Em país que neva até beleza, eu até acharia quase até bonitinho. Mas você não ta entendendo que isso não é um detalhe, que é de suma importância que quando você olha em volta não pareça uma merda quimérica tirada da cabeça de alguém com uma depressão irônica. Ácida. Essa cidade fica um puta lugar ácido no Natal. Porque não cabe, você entende? Não cabe esse monte de carro, esse monte de bola de natal, esse monte de veludo vermelho. Puta que pariu, achei o problema, é a merda do veludo vermelho! Isso que não entra pra mim. É um desconforto visual, saca? É que se tá um calor do caralho, veludo vermelho não é uma coisa reconfortante e carinhosa, que nem é pra essa merda de dia parecer, entendeu? É que se ta um puta dum calor que só da vontade de nadar e no máximo trepar, a porra do veludo vermelho é o maior emblema do desconforto que existe. É a rejeição mais pura, saca? É uma contradição tão gigante dentro de um suposto acolhimento. E o pior é que meu patriotismo babaca tem vontade de dizer: nossa cultura tropical não precisa de veludo vermelho, seus idiotas! Acolhimento (ou se você tinha vontade de chamar de amor pois chame que eu não ousaria jamais) não tem porra nenhuma a ver com essa necessidade invernal de criar umas cores e uns motivos pra juntar um bando de gente faminta. Gente faminta, essas massas de família de boca cheia, tudo gente faminta desesperada e só. É esse veludo vermelho desnecessário que mata. Mata a essência do que tem de bom nesse lugar. Porque a Europa é uma merda. Uma merda linda, toda bonita e agradavel, toda cheia de felicidade também, mas uma merda. Porque a gente não precisaria de nada disso, porque eu to parecendo uma versão mais ridícula do policarpo quaresma querendo instituir tupi e você não ta entendendo que essa não é a questão. É só incoerente, entende? É essa bosta do veludo vermelho que não tem nada a ver comigo. Com a gente, com nada. É essa bosta de veludo vermelho no meio dos postes da Paulista (como eu gosto daquele lugar quando ele ta real, porra), com umas frases tipo jesusdormeempazmeninobateosinojanasceujesusjesusjesus que eu não consigo suportar. Não é nada contra cristianismo, alias. Muito pelo contrário, alias, alias, alias, é quase uma vontade tradicionalista de merda que tudo seja morto até sobrar só a essência, só a semente, que acho que lá devia ter alguma coisa boa, de verdade. Acho que tinha alguma coisa sobre alguma coisa sobre alguma coisa sobre, nem precisaria falar e pa. Mas não tem mais, entende? Tem veludo vermelho, e é patético e é o emblema do desconforto em forma de bicho de pelúcia. Eu com vontade de tomar uns cinco litros de água gelada pra caralho, de ficar jogada debaixo do ventilador, e essa merda de papai noel me vem com braços abertos, renas e veludo vermelho. Que porra é uma rena pra mim alias? Puta que pariu... Que foi? Não, nada, tava pensando alto, sei la.

Tinha pensado em falar essas coisas, até. Tinha pensado que auto-literatura é ridículo. Tinha pensado depois que foda-se a literatura, isso aqui é só AUTO mesmo.

Uns poucos corpos humanos tentando se equilibrar em comida. Não é data festiva nem nada, é domingo. Sempre tive um amor secreto com esse banheiro, que tem essa janelinha. Eu vinha pra ficar sozinha. Sinto cheiro de 14 anos dentro dele. Sinto uma vontade de silêncio, porra... Uma vontade de agradar tão infantil, e fazer birra, e fazer silêncio.

Daí na porta chovia pra caralho. Chovia e é bonito pra caralho nessa cidade quando é verão e chove, e não sei porque tem que estragar isso com decoração. Ela abriu um guarda-chuva quase tão altivo quanto os seus cigarros. Tirei as sandálias. Menti que era pra elas não estragarem, que eram novas. Bem a minha cara não querer estragar sandálias novas que não são finas nem chiques nem porra nenhuma, que são pra estragar. Só pelo prazer da contradição. Mas era mentira, não era por isso. Era só pra andar descalço na chuva que é tão mais verdade que andar de sapato, e andar de sapato na chuva parece o mesmo desconforto que veludo vermelho nesse verão fodido. Então ela ficou preocupada, porque ela acha que estar confortavel e escorregar-bater-a-cara-no-chão-e-morrer são coisas muito próximas. Então ela apertou meu braço bastante pra que eu não ficasse confortavel, e portanto não escorregasse-batesse-a-cara-no-chão-e-morresse, porque ela me ama. E a gente andou debaixo do guarda-chuva até o portão. E pela primeira vez no dia alguma coisa era muito feliz, e eram os musguinhos embaixo dos meus pés, veludo verde molhado, confortavel e gelado, que nem era pra ser porque é verão e eu só queria me encher de água, e respirar toda a chva do hemisfério. E olhar pra baixo e ver meus pés e os sapatos dela, felicidade meio estúpida de descobrir o que a gente já sabe. Tão longe, diferente. Era só olhar pra mim no espelho, ficar feliz e acabou. Veludo verde de musguinho, assim, meio infantil, bom pra caralho.

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