sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

duas madrugadas morenas

Ter que ir embora, é ter que ir embora. A distânicia a percorrer, a urgência ou o tempo da viagem, são camadas finas de contratempo que se acumulam sobre a leve frase: ter que ir embora. Diferença de gênero, número, e grau: diferença nenhuma, na pele daquilo que se dá. Aquilo que se dá é ter que ir embora, é a madrugada morena de despedida.

Sobre a cabeça, sempre os aviões. Sobre, dentro, no entorno da cabeça os sempre eles aviões, de partida. A gente que vive de ir, vive assim, naquele friozinho insone depois da cama; daquele jeito em que acordar demora horas, e se acorda apenas no ar.

Duas madrugadas nos dois pés dum ano, escuros de desavisos, esperando gotas. As novidades de começo e de fim, planejadas ou não, são assim... como duas reticências só, à espera da terceira.

A gente que vive de ir, vive assim, colecionando madrugadas bolas-de-gude, que giram infinitamente em torno de si mesmas. Uma construção de passados nulos pra guardar de relíquia, algum bolso que eu nunca tive.

Minha primeira madrugada morena foi mesmo um casamento com aqueles braços fortes que me queriam. Me queriam assim mesmo como um arado, como um grande arado, o primeiro arado do primeiro homem, da primeira noite no início dos tempos. Na minha primeira madrugada morena, me foi lido o futuro em cartas dispostas entre as nossas pernas. As minhas por cima, e o chão é de um calor fevereiro, negando neves quaisquer. Um imenso começo, elevado a condição de existência, um traçado de planos e linhas futuras, completamente desamarradas uma da outra, soltas dentro dessa vontade imensa de não se despedir nunca, não tendo nunca se apresentado. Curto como um conto, do tamanho da nossa vida inteira. Amei por cinquenta anos: fizemos ali bodas de ouro, como no momento em que se casa, e que se ama pra toda a vida, até depois nunca nunca mais.

Bola-de-gude, minha madrugada que não se queria única. Mas é da sua natureza, e sua natureza saciada fala por si... torna-se inevitavel saber-se em paz, na sua unidade monosilábica. Dura algumas décadas de espera, e depois amadurece um momentinho pequeno, que sempre havia sabido.

A segunda madrugada morena foi de uma pequenina escuridão. Muito prazer, como é mesmo que se escreve o seu nome? O meu é aquele estirado ali ao lado, escrito em letras de... Mas nós pulamos as formalidades, os desinteresses, e os próprios passados todos. Ao contrário, sem votos nem esse tecido de planos doloridos coloridos da primeira. Por acaso estes braços me caem bem- disse. Seguir viagem, mudar de país... mas é como eu disse, há algo de profundamente idêntico nesses olhos que não dormirão. Há sempre um certo desespero em saber-se de leve à beira de tudo... tudo! Ali bem adiante, e a possibilidade de estar alucinando é grande, dado o adiantado da hora. Bobagens, minha filha, bobagens. O tecido das trocas é fino, e meus olhos se percebem de repente assim, expostos, imensamente desconhecidos. A desimportância e a leveza da tua brevidade, madrugada, me deixou assim, no desejo de te coroar, te eleger a mais bela, por singela e solta. Mas não tenho, dessa distância de passos, o poder de te guardar ainda acabada, pronta, una. A vigília daquele que vela é por demais bela, gêmea dos passados sublimes. Deixar-se ver adormecer, e ser desperta por outro, é a mais momentânea entrega, brincadeiras de olhos abertos do calor.

Mas ter que ir embora, é ter que ir embora. E nada se iguala à duçura leve de fruta que amadurece só uma, logo antes de já ser depois. Daí tua semelhança, madrugada morena de segunda viagem! Retorno ao início de tudo o que se perde, em novas camadas mais breves, mais leves, mais.

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