“a seda azul do papel que envolve a maçã”
a caneta faz diferença
a caneta, lápis, lapiseira, azul, preta, cinza, ponta fina, 07,9,5... determina.
Papel, caderno, computador: panela ou frigideira, com tefau ou sem.
Tudo são telas.
Computador: o cotidiano mesmo mesmíssimo teclado todo dia ela faz tudo sempre igual, disposições absolutamente gastas, não há novas combinações entre as mesmíssimas teclas. Explico. Certa vez tomei emprestado o computador da minha mãe para escrever um email. Outra marca, teclado, material. Nesta mesma vez sentei-me também noutra posição, sobre outro colchão. O design das teclas (e para não soar por demais representante de vendas do senhor Steve), a textura do material sob meus dedos, a temperatura sobre minha coxa- que difere em graus da máquina com a qual habituei-me tão rapidamente- mostram-se parte do próprio corpo daquilo que se escreve. Transparece inevitavelmente a mudança, a re-disposição daquilo que se cria num suposto universo abstrato.
É como se, talvez em menor escala, eu pensasse em outra língua.
A idéia não é algo imaterial, expelido em letras através de um ser humano com mãos, e tinta a disposição. Idéias são confeccionadas e construídas do material sobre o qual são projetadas. Óleo sobre tela; pensamento sobre metal mais ou menos frio, mais ou menos liso, através de um corpo mais ou menos confortável, dobrado sobre uma superfície mais ou menos dura, quente, áspera ou lisa. Não há, começo a aceitar, independência ou autonomia do pensamento, nem do ser pensante. A mente como unidade geradora de organizações, produtora de idéias desvinculada e apoderada do próprio corpo, do espaço em torno, é uma ficção. E arrisco o exagero: ficção produtora de cisões esquizofrênicas, delírios megalomaníacos, que beiram, ao mesmo tempo constantemente abismos de depressão: a improdutividade.
A tela, superfície imediata estende-se: o que vejo pela janela, o peso excessivamente conhecido desse ar. E a percepção da mudança minusculamente significativa que o peso e o material de outra máquina tiveram sobre minhas palavras, espelha-se na minha necessidade constante de “novos ares”. O corpo é o mesmo aqui, que seria ao pousar na china, certo? Não, absolutamente não. Terreno daquilo que penso, ou mais ainda sinto, é parte da concepção de tudo o que sai de mim, dependente de fora, completamente dependente. Mudança de material: preciso escolher madeira hoje, depois me esforçarei para conseguir grandes planícies plásticas, para cores mais vivas... Ou menos.
A descoberta da absoluta materialidade das ideias e sentimentos, essa afirmação inevitavel da dependência que a figura tem de sua tela, a compreensão da importância e da determinação criada pela superfície, gera ainda outra imediata compreensão: A minha necessidade quase Sabínica de enfileirar planos de partida. Melhor: modelar situações inimaginadas, produzir cuidadosamente a possibilidade do sentimento de todos os sentimentos: "I never thought I´d be here".
Daí a necessidade do novo terreno: não a traição do antigo, mas a soma de outras superfícies, que possibilitem a criação de novas combinações para os mesmos signos emocionais.
Talvez contraditório perceber que apesar dessa sequência infinita de nomes novos para placas de estrada, meu apego à nova superfície é sempre quase imediato! Coleciono em poquíssimos dias, minutos, horas, uma lista quase fotográfica de características daquele lugar, criadoras de ligações emocionais usualmente cotidianas, nesse caso guardadas como absolutas, depois de apenas um gole. Sabores experimentados apenas uma vez são guardados em algum ponto tão fundo da memória, que provavelmente passam em breve a ter mais relação com a imaginação, que qualquer experiência de fato vivida. Estranhamente, no entanto, sou capaz de reconhecer o mesmo exato gosto, o mesmo exato cheiro depois de anos e anos: por algum motivo que desconheço, meu paladar e meu olfato são imensamente superiores à minha capacidade racional de expressão: a essa necessidade de guardar em palavras pedaços antigos de mim.
O novo e a repetição não se excluem nem contradizem: somam-se, tornando absolutamente impossivel chegar mais perto do fim da lista interminavel de "afazeres para a vida": É como se eu percorresse sempre a metade do caminho que falta, já que cada novo espaço não elimina aquele nome, não passa ao próximo, mas torna-se uma vontade incessante de retorno. Cada espaço novo é vizinho de um outro espaço-tela de nome desconhecido, que possibilitaria combinações absolutamente novas da minha carne-tinta, e o número de novas superfícies é redondamente infinito! No entanto, os terrenos pelos quais passo por alguns instantes também se somam à lista de afazeres futuros: a repetição daqueles pequenos sabores, a retomada é como um reconhecimento de si mesmo, é como olhar-se no espelho depois de anos, é como a construção de um lar ilimitado.
E a casa, construida, física; faz-se aos poucos, do intervalo entre ir e ir, do conforto um pouco triste de desfazer malas, do preenchimento gradual de paredes com fotos de outras superfícies... que talvez permitam, no mínimo, outro cheiro para os pensamentos de sempre.
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