segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Chapeuzinho Vermelho - first draft

Sua cor favorita tinha sempre sido vermelho. Aos 8, seu Pai lhe dera de presente um canivetinho vermelho, logo antes de morrer de tuberculose. Depois da morte do Pai, a Avó cortou-lhe um tecido e fez uma capa com capuz, da cor mais bonita, para alegrar sua netinha.
Alguns anos depois, a Avó ficou doente, e Chapeuzinho Vermelho (que não tinha nome, porque capuz e máscara são quase a mesma coisa) ficou muito preocupada. A Mãe preparou doces, bolos e uma garrafa de vinho. Colocou todos numa cesta, e entregou a Chapeuzinho.

-Está bem, minha filha, se quer mesmo visitar sua avó, aproveite e leve a ela esses doces, para alegrar seu dia. Escuta menina, já estás bem grandinha. Não vai pelo bosque florido, que é muito perigoso. Segue sempre o caminho pedregoso da ferrovia.

Chapeuzinho fez que sim, porque era muito obediente, e menina obediente o trem não passa em cima.
Vestiu a capa e as botas pretas de couro, e desceu os degraus da frente.

Mente quem diz que mentira tem perna curta, e que é de pequenino que se torce o pepino. Mente ou escutou muita mentira, e eu desminto porque pressinto cheiro de churrasco. Quem parte, reparte, e não pega a melhor parte, ou é burro, ou não entende da arte. Já dizia minha mãe. E a mãe de Chapeuzinho disse a ela que fosse pela ferrovia, mas veja bem, aí é que está, ela não via as belas flores que crescem bem na beirinha do bosque escuro. Não precisa entrar no bosque, é só seguir pela beira.

Chapeuzinho queria levar, além de doces umas flores vermelhinhas para a Avó. Mal não faz. Esticou os braços, e foi andando pela beirinha do bosque, rente à linha de árvores, muito cuidadosamente. Mas não tem bosque alinhado assim tão bem, e com mais três ou quatro florzinhas, ela já estava no meio do bosque lindo e escuro. Nessa rua, nessa rua tem um bosque. Que se chama que se chama solidão. Dentro dele dentro dele mora um anjo que roubou que roubou meu coração. Chapeuzinho florzinha Vermelha ali no meio do bosque, tão bonita de se colher. Dizem que Lobos são espertos. A vontade é mais esperta que a esperteza, e o que Lobo tem, é uma vontade enorme. Se assim funcionar, então sim, o Lobo que espiava Chapeuzinho ali daquela árvore, era mesmo muito esperto. A fome bateu, como só a fome sabe bater, mas ele sabia que por ali não podia ser. Foi jogar conversa fora, olhar melhor a florzinha vermelha.

-Boa tarde, menina!
-Boa tarde, senhor.
- O que uma menina tão linda como você faz por aqui, no meio do bosque?
- Estou colhendo flores para a minha Avó, ela está muito doente. Quem é você?
- Eu sou o Lobo.
Chapeuzinho olhou então pela primeira vez a figura que lhe dirigia a palavra. Ele tinha olhos, orelhas e uma boca tão grandes. Sim, isso ela já notou logo de início.
- Não posso ficar conversando agora, Lobo, tenho que ir encontrar minha Avó.
- E onde mora a sua Avó?
- Do outro lado do bosque.

Cada um seguiu seu caminho, e algum tempo depois Chapeuzinho chegou, com a cesta cheia de flores, à casa da Avó.
Bateu na porta. Ninguém atendeu. Vovó?
Abriu a porta e entrou. A casa escura de tão deitada, deixou-se iluminar um pouco pelo dia que já ia caindo. No canto, uma cama. Vovó?

Chapeuzinho sentiu um cheiro triste de final, de depois de depois de amanhã. A capa envolvia-lhe, e o medo da chuva é o mesmo medo que o medo da seca. O cheiro de poeira e doces, o cheiro de vinho e...
Deu três passos. A figura na cama, debaixo dos cobertores. Debaixo dos cobertores um rosto cara escura de bicho sob panos brancos. Ele, com um gesto de cabeça, apontou a mesa de cabeceira. Ela olhou, viu a taça de vinho, o prato de carne. A carne é vermelha.

Aproximou-se, dois passos.

Desentendida menininhinhazinha diminuindo com olhos de cadê minha mãe que eram mesmo cadê minha Vó, minha velha velhinha que já me esquecia cadê. Estendeu as mãos para a taça, bebeu um gole do vinho. As mãos tremiam, não de medo, mas de frio. Tinto descendo um antes-do-amargo de quem ia entender. Rastro queimado de álcool que traçava uma linha da cabeça ao ventre, e de volta aos olhos. Olhou-o novamente.

Na cama, a figura esguia, de esguelha transparência. O monstro do homem. O escuro debaixo da cama, deitado em cima, invertendo palíndromo a ordem dos medos. A ordem dos modos.

Olhos nos olhos quero ver o que você faz

(A morte era flor cor de vinho ali com cheiro de mofo, de carne, de sangue seco, de saliva ainda viva. A morte cheirava sua nuca, nunca dantes mordida. A morte acenava da janela de trás enquanto sua pele branca pedia pedia pedia um copo d´água, tenho sede, e os meus olhos pedem teu olhar. A pele pedia um novo atrito dissecado e branco, explosivamente branco de onde surgem todas as células. E a morte ali, penetrando a vida amolecida de sucos, sulcos banhados de vinhos antigos, nascimentos trágicos e outros tantos ardores futuros. A morte e o desejo de abrir todas as janelas. A morte na cama, o orgasmo discreto dos teus dentes. Quando a dor e o desejo soltassem um o corpo suado do outro, ela teria finalmente entendido.)

Dos medos todos que poderiam ter aflorado em passos desesperados, gritos aflitos ou não, nenhum deles conseguiu distanciar-se da beira do estômago. A tristeza das realizações mais duras tomou-lhe os vinte dedos, os dois milhões e quatrocentos fios de cabelo, as duas pernas, os olhos tão grandes e a única boca vermelha, entreaberta. Deu um passo em direção ao lado da cama, como que para velar um doente. A perda corta as cordas e as amarelinhas, as pedrinhas de cinco marias, os panos das bonecas e uma capa vermelha.

- Você matou minha Avó?

Era e não era um pergunta. Ele inclinou ligeiramente a cabeça para baixo, sem tirar os olhos dos seus olhos. Os olhos seguravam cada um a ponta de uma vara de equilibrista. O perigo abísmico sobre a cama, ameaça vulnerável, despida, crua de animal. Os olhos negros de bicho não diferenciavam pupilas, e ela insistiu em ver melhor seu próprio reflexo no poço: deu o último passo, expondo perpendicular. Espelhada vermelha nos dois círculos negros. A barra da sua saia branca roçava de leve os cobertores. Nunca estivera tão próxima.

O tempo virou do avesso suas mangas e bolsos, desembaraçando a vastidão inerte que se alastrava. E tudo aconteceu no tempo em que um olho prepara-se para piscar. As duas bocas se abriram em espelho: A dele num rosnado de bote, dentes na velocidade de flechas brancas, afiadas como a lança na mão do selvagem, o homem em seu berro de posse, de perfuração. Sua vida pela minha, minha vida sobre a sua, por entre a sua. A dela num gemido agudo e curto, do susto sabido e fundo, de arregalar os olhos verticais e olhar de frente pela primeira vez o grande abismo. Desperta a dança, simultânea sacou invisivelmente do bolso o canivete.

Os caninos brancos apenas talharam levemente o ventre macio, afastados rapidamente pelo ardor do corte que o canivete espelhava em sua pele negra de pelos grossos. Estancou novamente o ar. Dois cortes. Feridos, ambos: Chapeuzinho via a linha vermelha cortada logo abaixo do seu umbigo, o sangue que lentamente transbordava transversal, manchando sua saia branca. Ainda tremia, segurando com força desembainhado seu canivetinho vermelho. O Lobo na cama, o corte que ela lhe abrira manchando sua carne de um vermelho vivo, superficial, excruciantemente real.
Traçada a linha, cortada a margem. Ela levou a mão ao ventre, apertado de dor. Ele retraiu um pouco o corpo de fera acuada.

Ainda segurava o canivetinho, baixava devegar o braço. O Lobo já não mostrava os dentes. Olhavam-se ainda, talvez tomados do mesmo assombro.

Quando chegasse em casa diria à Mãe que enterrara a Avó no jardim, e que o corte no ventre era dos espinhos das roseiras. Não saberia jamais explicar, e nem tentaria nunca entender o motivo do que fez em seguida. Executou as ações como se não estivesse lá, lentamente, como alguém que nunca tivesse decidido se mover: Fechou a lâmina do canivete vermelho, e ainda olhando-o nos olhos, guardou no bolso a arma. Cortou com força um pedaço do pano da saia. Deixou, dolorida, que lhe escorressem três lágrimas dos olhos, e molhou com elas o retalho. Aproximou-se calmamente e esticou a mãozinha branca na direção da figura monstruosa. Estancou com o pano branco o sangue que escorria do corte, abaixo dos olhos negros do Lobo. Ele não se moveu. Apenas o som de duas respirações, contraídas em direções opostas. Ela então soltou o pano, e percebeu tirando a outra mão do ventre, que também o seu corte estancara. Ardia.

Deu um passo atrás. É para te ver melhor.

Olhou pela última vez aqueles fundos olhos negros. Compreenderam-se, em acordo silencioso e imóvel.

Voltou-se para a porta, deixando cair dos ombros a capa vermelha. Só um vestido branco, manchado leve de sangue. Nunca mais veria a capa, nem o Lobo, nem a Avó. E depois de certo tempo, chapeuzinho vermelho sem seu capuz não faria mais sentido, e teriam de chamá-la por seu verdadeiro nome.

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