quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Pânico de terrorismo


                                                            [para marília garcia, com seu ritmo na cabeça]

I

5 ou 6 de fevereiro de 2010,
Guarulhos - Salvador - Frankfurt - outro aeroporto de Frankfurt - Milão
23 horas, se não me engano.
"life is crazy, candy baby" was the text I wrote him on the way to the airport
10 horas de sono, 5 dias
contas que eu fiz para dar conta de coisas imensas que não envolviam números
eu estava afundando, e flutuando sobre uma fina camada de falsete do caetano

Salvador - Frankfurt: o voo mais barato do Brasil à Europa
mais conhecido como uma péssima ideia
pesei mal as malas. nunca pesei bem uma mala se quer em toda a minha vida
faz parte de quem eu sou: pesar mal as malas. e me auto-flagelar porque não sei pesar
(again: numbers to try and figure out numberless things. não tenho memória para números, mas me lembro desses. Porque eles não são números, porque eles são desculpas)
wait for it:
me lembro de dormir a cada segundo de cada meio de transporte
pra compensar
a falta de sono, a despedida, o medo putaquepariu que medo.
Frankfurt. frio. ônibus. outro aeroporto - Frankfurt.

Como eu disse, pesei mal as malas. A moça da tam também pesou mal as malas
balança brasileira, balança alemã, racionalidade, números, tropicalismo etc e tal.
voo low cost, low bagage all that jazz:
overweight.
poucas notas de cem euros para durar ate arranjar um trabalho.
a única brasileira da fila: de joelhos no chão abrindo a mala e pesando:
o que fica, o que vai. o que vale dinheiro, o que vale pagar sobrepeso.
sobrepeso era uma boa metáfora.
concluí rápido: dispensar a malinha cor-de-rosa. (odiava a power ranger cor-de-rosa quando criança, queria ser a amarela porque eu não era princesinha. ia ser fácil)
nada é fácil. ler poesia é fácil. comer, talvez.
arranquei metade de um caderno. também cor-de-rosa, que surpresa. (que caralhos de diferença fariam metade das folhas de um caderno?)
Não me lembro mais o que ficou na mala cor-de-rosa. Lembro só de uma calça caqui. Feia. Eu usava, era quente, mas era meio feia.
Pensei em guardar a mala num locker. Ia custar. Não ia ter quem buscar.
Não conheço ninguém em Frankfurt, não quero nada com Frankfurt.

Despachei as outras, peguei a mala rosa pela mão, andei em direção ao embarque. Comecei a chorar porque achei que isso era coisa de criança. Errar o peso, não ter dinheiro, largar uma mala.
Chorei bastante de vergonha, e larguei a mala.
Assim, como se não fosse nada. Mas chorando.
Um oficial me apontou a mala, com cara de pergunta
Fiz que não com a cabeça, chorando.
Fui andando pro embarque, como se não tivesse largado uma mala, por sobrepeso
inventei as metáforas todas do desapego, e só depois percebi:
pânico de terrorismo.
oficiais indo em direção à minha mala, gente confusa, putos da vida comigo, quando entendessem que eu não tinha uma bomba.
eu só tinha levado mais do que devia pra passar seis meses sem dinheiro na europa
e comecei tendo que largar tudo, uma malinha cor de rosa, várias folhas de um caderno, etc.

II

25 de janeiro de 2015: ônibus de Amsterdam pra Paris
muito menos drama, um fim de semana, nada de mais
(sem grandes pesos de mala e horas de sono pra cobrir alguma coisa. sem despedidas nem falsetes do caetano. só andei pelo Jordan e conheci um homem chamado Lake, só aprendi a dizer hipopótamo em holandes e conheci um bluesista da California. só o quarto de Anne Frank e cartões postais para a minha mãe. só)
arrumar a mala no escuro das 8 da manhã de inverno num quarto de hostel com mais 17 pessoas
(números)
uma sacola de sobras, uma sacola de compras, e carteira, e bolsa, e o que mais não coube.
Chegando em Paris eu tinha:
uma malinha preta, uma mochila cinza, uma sacola de plástico amarela.

Chegando em Paris metrô até aí tudo bem umas 20 estações
(números)
Chegando na estação Charles Degaulle Etoile (acho um desperdício de nome. adoro nomes de estações, e acho um desperdício ter o mesmo nome do aeroporto. por sorte eu parti por Orly, e a viagem ganhou um nome a mais)
chegando nela, o mapa. o mapa e o caderninho, as indicações do apartamento:
24 rue arc de triomphe código para abrir a porta etcétera
olho o mapa, apoio a sacola. segue pelo arco até a mac mahon (imagino uma história sobre o detetive Mack Marrom, que desvenda crimes dublado ao lado de seu cão na sessão da tarde)
Saí da estação, andei em torno do arco do triunfo
que é feio, mas também é bonito.
achei a rua do detetive, achei a rua do apartamento, digitei o código da porta, subi as escadas
abracei sentei falei três frases e a terceira foi cadê minha sacola
coloquei de volta o casaco desci correndo as escadas corri de volta todas as ruas em volta do arco do triunfo
saída do metrô por onde saí entrar por onde saí
(retrace my own steps. sounds like I found my metaphore again right there)
o mapa. deveria ter sido no mapa
(sounds like I found my metaphore right there)
tenho três coisas na mão. no mapa peguei o caderninho: três coisas na mão
a sacola não estava no chão, embaixo do mapa
senhor da loja ao lado me vê e pergunta "brazil?"
oui, brazil.
ele me aponta o guichê onde três funcionários do metrô de Paris me olham e um pergunta:
brazil?
Dentro do guichê do metrô minha sacola foi aberta, e todos os meus pertences
esquisitos
estão dispostos sobre o balcão
a cena é engraçada, e dessa vez eu já pensei rapidamente:
pânico de terrorismo
(Paris em pleno pós-charlie e eu largando esquecendo deixando abandonando
desligada distraída esquecida irresponsável perdida uma sacola amarela no metrô Charles Degaulle Etoile)
"nenhuma notícia, não deu tempo da tua sacola parar paris" - ela brincou.
parar paris.

Eu entrando no guichê vou rindo com vergonha
(rir de vergonha. 27 anos X 22 anos. números. crescer e rir de vergonha. ou nada tem a ver uma história com a outra e o pânico se mede em peso: sacola mala, ônibus avião, fim de semana seis meses. 22 anos, 27.)
vou rindo e pedindo pardon (depois me toquei que devia ter dito desole, mas não me acostumo com desole), e merci beaucoup pardon merci pardon merci.
E o moço tenta me explicar alguma coisa, mas ele também está rindo
Todos os meus pertences perdidos, por 10 minutos (números) enfileirados randomicamente
enfileirar de um jeito randômico: números para coisa inumeráveis.
Lápis do museu Van Gogh, dois. Borracha do museu Van Gogh, uma.
Cartões do Stedelijk, da Anne Frank Huis, uma pilha de moedas
o saquinho de sal que fica na minha carteira porque tenho pressão baixa
papeis, meu cartão de embarque, de uma semana atrás
incenso de uma loja indiana de Amsterdam
minha cartela de pílula, meu RG.
(O passaporte não. o passaporte estava no bolso do casaco suado de correr em mim. O passaporte eu não ia perder)
Eu não perdi as moedas nem a borracha do Van Gogh
Eu não perdi nada
pardon merci beaucoup
Nada se perde
Nada se perde tudo se

nada se perde, tudo se enfileira no guichê do metro Charles Degaulle Etoile
pra ser analisado
é o que acontece com os amigos, com os amores que acabam
é o que acontece com o dinheiro e com as chances, é o que acontece com a infância
vai tudo pro guichê do metro Charles Degaulle Etoile e os funcionários no M de Paris
fazem uma ficha sua:
uma cartela de pílulas, 2 namorados e um terceiro grande amor
umas amizades coloridas mal-resolvidas
dois lápis do museu Van Gogh
uma malha familiar mal costurada, a virgindade,
o medo de altura, de abrir os olhos debaixo d'água
a pressa aquele bichinho de pelúcia, muitas fotos em um computador que quebrou
Os dentes de leite os dentes do ciso
a sacola de plástico amarela que nem a power ranger
a casa da infância, mais uns dois ou três amores
tudo para o guichê de compra e venda, os achados e perdidos do mundo
no metrô Charles Degaulle Etoile.

a mala cor-de-rosa não vai estar no guichê do metro Charles Degaulle Etoile,
porque a mala cor-de-rosa eu não perdi, eu larguei.
largar é um verbo bonito, que causa pânico de terrorismo.


Sem comentários:

Enviar um comentário