Ontem
fomos ao Sesc Pompeia ver a performance de Nuno Ramos e Eduardo
Climachauska. Uma estrutura cúbica de estantes enormes ligadas a
dois Globos da Morte, daqueles de circo, na parte interna do cubo.
Nas estantes, objetos. Quatro categorias: vidro cerveja, vidro
nanquim, cerâmica e porcelana. Antes de tudo, caminhávamos em torno
e por dentro da obra. Esculturas de porcelana estilo casa de vó,
feno, filtros de barro, utensílios antigos, moldes de dentes
daqueles que a gente fazia na ortodontista. Mais um sem número de
outras coisas. Por dentro encontramos um retrato do Paulo Coelho, uma
prateleira inteira de exemplares do Memórias Póstumas de Brás
Cubas (eu dei risada e disse: nossa que bom que isso vai cair). Entre
a sensação ambígua de quarto de colecionador e acúmulo exaustivo
de 'horder', curioso e levemente sufocante. Eu que costumo curtir
observar obras em silêncio estava aliviada pela multidão
conversando, sentia vontade de falar muito: a obra não pede
contemplação. A ideia é: dois motoqueiros rodam nos globos da
morte, a estrutura sacode, as coisas se destroem.
Ficamos
bem para trás na multidão, na hora em que os motoqueiros entraram.
O choque do circense e da galeria naquele espaço do Sesc Pompeia,
pelo qual tenho um carinho nostálgico (passei ali carnavais vestida
de Sininho enquanto ela ainda não se chamava TinkerBell), me
arrancou um sorriso. O circo e a performance no fundo estão de mãos
dadas, pensei, com um puta frio na barriga. Deram partida, as pessoas
aplaudiam e gritavam animadas para o começo de um show. Eles
começaram a girar. De fora, e ainda mais de longe, o olhar tem duas
opções: foco nas coisas da estante, mais óbvio, ou foco nos
motoqueiros lá dentro, zunindo. As estantes tremem, começam, aos
poucos a cair coisas. O jogo está aí: as coisas demoram muito mais
para cair do que a gente imagina. Caíram, do lado que nós víamos,
apenas algumas coisas maiores, e a cada uma gritos de alegria da
plateia. Se você foca, com esforço, o olhar no motoqueiro lá
dentro, porém, eles estão zunindo de ponta cabeça numa velocidade
estonteante: Globo da Morte como a gente via no circo mesmo,
aterrorizante, barulhento, intenso. A pessoa com corpo de gente roda
lá dentro numa velocidade de prender a respiração. A velocidade da
queda dos objetos é outra: algo entre o tempo humano e o tempo
histórico? Geológico? Superiterpretei? Ouvíamos, na ponta dos pés,
o barulho de algo que se quebrava, aos poucos, e a cada barulho eu
pensava que devia ter ficado do outro lado, “onde as coisas devem
estar caindo mais rápido”. Nós queremos ver, nós queremos sentir
a tal da morte desse tudo. A menina na minha frente grita “Quebra
tudo!” É isso que nós estamos sentindo, e a coisa tem um
crescente, quando mais eles rodam mais treme. Alguém no meio da
plateia grita “Fora Temer!” e eu entendo que é isso: essa é a
catarse da esquerda. Essa era pra ser a catarse da esquerda. Mas o
que acontece é muito mais brilhante do que o script. Tudo isso em
poucos minutos para. Eu não sei por que, não consigo ver. O
motoqueiro de trás parou. Dizem que ele caiu. Parece estar tudo bem.
Demora a recomeçar. O outro motoqueiro faz mais duas rodadas: a
sensação não é menos intensa. Eles estão se falando, o outro,
parado em cima da moto parece dar sugestões. Como fazer essa porra
toda cair sozinho. A real é: mesmo em dupla aposto que essa porra
toda não cai.
Depois de mais duas tentativas ainda intensas e espetaculares, em que vemos cair um violão-celo (eu tinha ficado com dó quando vi o instrumento ali, na estante de cima. Na hora H torci com todo mundo pra ver ele se espatifar: a gente comemora cada momento), eles decidem acabar a performance. Não rolou? Rolou. Rolou pra caralho. Rolou mais do que o previsto: rolou que o mundo é um lugar cheio de metáforas e a catarse da esquerda está difícil, muito difícil. A gente grita Fora Temer, mas a porcelana brega e impositiva, aquela que ocupa um espaço que não lhe cabe, não cai. Aliás, por aqui, ela anda vencendo no primeiro turno. O brilhante da obra é que ela abre espaço pra se significar sozinha, ali. Os motoqueiros descem e recebem os aplausos da plateia. É impossível fugir das metáforas, impossível não se sentir elite intelectual que aplaude a força de trabalho, que no fundo é artística, é estética, é revolucionária. É artista de Globo da Morte (que não é Rede, pelo contrário) tentando detonar essas porras todas. Mas elas não caem. Algumas. A gente vibra pelas poucas. O genial da obra ontem foi esse coito interrompido da esquerda paulistana. Depois de domingo, depois de impeachment, não poderia ter sido diferente. A gente quer brincar de sentir alívio, a gente quer brincar de catarse, mas a obra ganha vida própria, e manda tapão na cara. Curte aí essas poucas peças que caem, curte aí essa vontade coletiva de cair, o barulho, o cheiro de diesel, curte aí e aplaude agradece os caras que estão tentando. Um deles saiu mancando. Espero que ele esteja bem.
Depois de mais duas tentativas ainda intensas e espetaculares, em que vemos cair um violão-celo (eu tinha ficado com dó quando vi o instrumento ali, na estante de cima. Na hora H torci com todo mundo pra ver ele se espatifar: a gente comemora cada momento), eles decidem acabar a performance. Não rolou? Rolou. Rolou pra caralho. Rolou mais do que o previsto: rolou que o mundo é um lugar cheio de metáforas e a catarse da esquerda está difícil, muito difícil. A gente grita Fora Temer, mas a porcelana brega e impositiva, aquela que ocupa um espaço que não lhe cabe, não cai. Aliás, por aqui, ela anda vencendo no primeiro turno. O brilhante da obra é que ela abre espaço pra se significar sozinha, ali. Os motoqueiros descem e recebem os aplausos da plateia. É impossível fugir das metáforas, impossível não se sentir elite intelectual que aplaude a força de trabalho, que no fundo é artística, é estética, é revolucionária. É artista de Globo da Morte (que não é Rede, pelo contrário) tentando detonar essas porras todas. Mas elas não caem. Algumas. A gente vibra pelas poucas. O genial da obra ontem foi esse coito interrompido da esquerda paulistana. Depois de domingo, depois de impeachment, não poderia ter sido diferente. A gente quer brincar de sentir alívio, a gente quer brincar de catarse, mas a obra ganha vida própria, e manda tapão na cara. Curte aí essas poucas peças que caem, curte aí essa vontade coletiva de cair, o barulho, o cheiro de diesel, curte aí e aplaude agradece os caras que estão tentando. Um deles saiu mancando. Espero que ele esteja bem.
É
claro que parte dessa sensação já está na proposta da obra: mesmo
com os dois motoqueiros rodando a toda, as coisas demoram mais a cair
do que a gente pensa, e isso é brilhante. Mas no vídeo da
performance que rolou no Rio a gente ve que a coisa vai se
intensificando, tem um gosto sim de catarse, que a gente, de São
Paulo, não teve. “É como um bichão que se sacode, que quer se
livrar dessas coisas, desses mosquitinhos nas costas”, diz o Nuno
no vídeo. Pois é, os mosquitinhos dos valores velhos resistem. Aqui
em sampa eles são mais duros ainda. Aqui em sampa em pleno 2016 está
difícil gritar Fora Temer e ver algo cair. Ontem foi quase sem
vandalismo, e a grande sacada Brechtiana de tudo isso é que catarse
às vezes não transforma. Quem sabe esse coito interrompido da
esquerda deixe uma pulga atrás da orelha, para sacudir depois.
Fica
o desejo que na performance do segundo turno no Rio a casa caia pras
velhas dentaduras: “Quebra tudo!” eu grito junto dela, aqui em
silêncio.
Parabéns,
Nuno e Eduardo, porque mesmo o implanejável se planeja numa obra, de
alguma forma: essa capacidade de dar vazão àquilo que o mundo
propõe, e não vice versa.
Sampa
do meu coração, onde eu já pulei outros carnavais, bora levar essa
pra casa, quem sabe pegar nuns bastões, aprender a rodar essa porra
direito.
Vaso
ruim não quebra. Vamos ter que sacudir mais.
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