quinta-feira, 16 de maio de 2013

Prólogo - ou de como esmagar e não esmagar uma rosa -

Interessa-me a refeitura, a refazenda da fada, do conto do antigo, atávico, amplo e ambíguo, do ancestral.

Pergunto-me então, o que acontece quando ousamos modificar um conto de fadas? Me arrisco no esgotamento da interpretação, no esvaziamento do mais profundo dos sentidos inexplicáveis? É esse revolver a terra, justamente, que me interessa. É esse destrinchar e reescrever de verdades absolutas e passadas que me puxa. Que reaconteça então, o que se quiser.

Sempre detestei os críticos experts em "e se"s da literatura. Ainda os detesto, com facas nos olhos, hipotéticos patéticos. Mas o seu erro não é a maculação da obra, do personagem, da trama, ou do sentido daquilo que não poderia ter sido, se não, aquilo. Entendo agora que o que me parece absurdo é a posição distante e ascética dessas luvas brancas. Daqueles que não querem sujar as mãos de tinta. It's a dirty job.

Dizque disse Valery ser preciso ser crítico para ser escritor. Pois bem, verdade. Também, porém, é preciso ser tradutor para ser crítico, preciso ser escritor para ser crítico. no sentido mais banal de ser escritor. é preciso mastigar texto dentre os dentes, "filete de sangue nas gengivas" e o caralho. É preciso deglutir palavras, é preciso ser contaminado por estilos e refrões, é preciso ser copista como Pierre Menard de Borges, queimar manuscritos e negar convicções como Galileu de Brecht, ficar em silêncio como os poetas japoneses. É preciso pegar o texto com as mãos, come-lo com a boca, rasgá-lo com os dentes, pisá-lo com os pés, escrevê-lo novamente. Então vale até se perguntar sobre vida sexual de Capitu, os desejos mais profundos de Helena, e se era possível para o personagem da Terceira Margem do Rio não oferecer-se em sacrifício ao pai. Escrevam, pois, toda a des-história da literatura, toda outra vez. Mudem e desmudem o que quiserem, sem distância, sem ciência, com as mãos. Então será mais verdadeira a palavra que aponta para dentro e para fora do texto já existente. Não me interessa a obra imaculada, interessa-me a obra maculável.
 It's a dirty job, but someone's gotta do it.

Retorno ao meu ponto: reescrever contos de fada. O que significa, então, enfiar o braço até o ombro, no lodo denso de matéria há séculos se decompondo e fazendo existir massa de verdade orgânica e original? O que significa enfiar as mãos e revolver a estrutura original e absoluta, o próprio arquétipo?

O roubo, inicial e final da identidade. Talvez fosse e seja mesmo questão de antropofagia. Estenda, entenda, o conceito para fora dos nacionais e desnacionais: para fora de espaços e para além de tempos. Os jardins de veredas de Borges, os tempos que se cruzam. Tenho medo de matar a realidade, resolvendo-a com modificações confortáveis. Não, não é confortável matar ou perdoar a fera. É necessário ir além do julgamento do final feliz. É necessário ir além de tudo isso, para dentro do estômago. As palavras têm o poder curativo de entender que não se é curável. O xamã, para o luto. O lobo para ser o lobo, e não a solução interpretável do lobo. O que já está escrito para servir de tinta e papel. Todos os livros do mundo: papel manteiga, superfície. Será que ainda não entendemos a inexistência de folhas em branco? De superfícies abertas e limpas, à espera de nossa palavra original? É preciso roubar a Whitman, entrar no jogo amoroso entre Whitman e leitor, fazer menage a trois. É preciso entrar sem medo no meio das aspas, como Ana.

Mas eu tenho medo de matar a verdade original do ritual. É pela destruição e pela morte do pai e reorganização em desordem que se pode respeitar a tradição. Eu não sei, não tenho a mais vaga certeza. Me disse o mestre, citando sua mestra, que não esmagar uma rosa depende de não se ter medo do ato destruidor. Sei apenas que precisava dar a Chapeuzinho Vermelho canivete, pai, força bruta, a capacidade de dissimular, e um futuro nome. E que precisava roubar-lhe a capa.
 "a identidade se parece mesmo com um roubo inicial

fecha aspas.

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