segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Imagine um deserto...

Hoje, o deserto é na lua
branco, é de noite
-na minha boca o dia vai querer raiar-
duro o chão de pequeniníssimas crateras de desenho infantil
a areia é mais branca que a do Abaeté
(com seus misteriosos crimes, com seus dias cheios de nanã)
dura. a areia é dura. de vez em quando se desfaz e desfaz e voa bem pouquinho...


eu não sou astronauta, de calça bag branca, imito.
tem algo no chão, e eu olho. o dia é noite e é preta com raios vermelhos, lilases?
o dia vem em forma de planeta outro.
e eu procuro saber se vai haver azul no céu,
mas é cedo.

o planeta é outro, e não é sol. ilumina de cor de rosa e roxo, e venta no meu rosto.
esplêndido, esse novo pequeno e segundo sol. ele é roxo, azul, aurora.
amarela mesma, só eu.

desfaço com os dedos as pedrinhas de areia, frias de noite. ela desfaz, ela desvem, ela esvai.
o cubo está pendurado no pescoço. é minúsculo e azul, de metal na corrente
poderia até colocar na boca
poderia engolir meu talismã.
se entrasse nele dormiria o sono de mil anos.
seguro entre os dedos, seguro.

respiro fundo enquanto amanhece. mas sei que a noite restará nas minúsculas crateras
e aqui não é a Terra, aqui é diferente.
para o meu lado direito, ao longe, um animal está no chão
sentado como um camelo, mas é um cavalo.
é um cavalo branco com manchas, de pele meio amarelada, brincalhão
novo, mais do que jovem.
está parado, doente, cansado, triste. está doente.
eu olho fixamente, de longe, para o cavalo doente. Seguro o cubo com força entre os dedos e sinto uma dor imensa.

À esquerda, ao longe, outro. O cavalo é preto, está de pé, parado em uma duna, a duna tapa a vista do espaço inteiro. A crina do cavalo não deixa ver o espaço sideral. Ele é grave, e tem olhos profundos, imóvel. Apenas a crina reage ao vento do novo sol, como o meu cabelo.
Eu estou imóvel e doo com o cubo entre os dedos. Meus ossos doem e começa a ficar frio. O dia teima em amanhecer de vagar demais para tamanha altitude, temo que vamos morrer d frio. É preciso fazer uma fogueira.
O cavalo no alto não, ele olha tudo de cima e ficará bem, ele não sente frio.

Eu não tenho certeza e imobilizo. Confio na aurora, confio no segundo sol, e confio que o verão está na esquina dos meus olhos. Seguro, ainda, o cubo minúsculo nas mãos, ele agora está menos frio.

Existe, na diagonal direita, para frente do cavalo doente, uma escada. De madeira, simples, fincada no chão. Poucos metros saem da superfície branca. Ereta, ela cintila levemente lilás. Vou até ela e a toco, porque ela sei que posso tocar. A pintura marrom está descascada, e por cima essa fina camada de algo que brilha, de leve. Na base, perto do chão, está rachando, talvez uma parte mais apodrecida. parece fazer parte de um escombro. A parte que respira em um escombro, e que brilha, ruínas brilhantes que subiram à luz pra respirar. Me aproximo da base, ajoelho, como se soubesse que lá embaixo continua o naufrágio de um navio. Ela respira e leva ar para o resto do navio afundado há milênios... Um pedaço vivo de uma coisa viva, porém naufragada há muito tempo, vestida de coisa morta. Mas ali vigia todo o deserto, é de lá que se veria o mar.

O ar então, ganha cheiro de maresia. E a lua é também parte do grande mundo que o mar tocou um dia.

Eu sei que é a hora dela, eu sei, mas eu não queria vê-la chegar. Ela é amarelada e se mistura com as cores do dia que chega, ainda muito de vagar, ela é cinza também e traz cores e sons ao céu, a tempestade. O vento encrespa, eu estou perto da escada. Eu estou perto da escada que é um mastro, que é um ponto fixo no mundo, e que me salva de sair voando, se precisar. Mas não precisa. O vento encrespa e me descabela. Só então eu procuro com  olhar o cavalo altivo, no alto da duna. Ele relincha, se move, pela primeira vez. de um lado para o outro, e me olha, mas não desce. Eu também não subo. Mãos na escada, eu me mantenho ali. O outro cavalo também continua onde está, no chão, treme apenas. Eu continuo insistindo com o olhar, quero uma resposta a uma pergunta que não existe, e bebo atenta os movimentos do cavalo preto. Ele para, ainda onde estava.

Um raio me assusta, direto na escada, mas não me machuca. Eu solto dela, caio no chão assustada. Procuro o olhar do cavalo negro, e ele parou, pouco mais abaixo na duna, me olha. A corrente do cubo arrebentou, e eu seguro ele pequeno na mão direita, com força para não perder. Só agora a chuva despenca, toda de uma vez. Eu penso que ao menos o cavalo doente terá o que beber, ele precisa de água, de muita água. Eu sei que ele estará bem, e que precisa beber muita água. A chuva não me assusta, mas se torna urgente, e eu finalmente corro para a direção que quero correr: o cavalo preto na duna. Seguro na mão direita o cubo, me encharco de toda a água que vem desabando do céu. Sei que a tempestade não me fará mal, sei que a água é só água, mas sei que ela cria a urgência e que me faz correr para onde eu quero correr. Eu subo a duna e paro na frente do cavalo, me sento. A chuva diminui. Estou encharcada. Com a mão esquerda toco o pescoço do cavalo, encharcado também. Ele aproxima a cabeça da minha, a chuva escorre da sua crina. Ainda altivo, mas mais próximo. Suas patas estão afundadas no chão que agora é de areia fofa e molhada. Minhas roupas estão encharcadas e cheias de areia. Abro a mão direita e vejo o cubo, agora mais brilhante, vivo. O cavalo olha na direção do sol, o segundo, o novo sol azulado, lilás. A chuva está passando. Eu também olho. Ele muda de cor, de tamanho, venta dentro do sol-planeta, e me assusta um pouco porque tudo ali está mudando e mudará o resto da existência. Seguro o cubo com força, e estou protegida pela grandeza do cavalo, pelo seu pescoço e sua cabeça, acima da minha.

Só então olho novamente para o cavalo lá embaixo. Ele continua na mesma posição, exatamente. Seu olhar é triste, mas eu sei que ele agora ficará bem. Do seu lado existe uma flor, mas ela não está viva. Talvez ela esteja afogada da chuva, talvez ela nunca tenha sido viva. Uma única flor vermelha, murcha e ensopada, como se tivesse brotado da própria existência do cavalo, como se o cavalo fizesse parte do chão, e a flor da junção dos dois. É muito triste. Eu choro e me levanto. De repente sou maior que o cavalo preto, sou maior que o cavalo branco. Sou maior que a duna, e quase do tamanho do novo sol. Me lembro de repente do cubo, e agora ele está no bolso esquerdo da minha calça branca. Estou tranquila, e deixo que ele descanse. Desço a duna a passos imensos, em apenas três. Existe, na direção de trás de onde eu vim, talvez um pequeno lago, e eu quero me lavar. Sorrio ao olhar para trás, para o cavalo negro, ainda em cima da duna, quero dizer a ele que venha também, logo depois de mim. Que me deixe ir à frente, apenas alguns minutos, e que me siga depois, que eu tirarei a areia do corpo dele. O outro cavalo fica, está aos poucos se levantando, e eu sei que ele seguirá na direção para onde some, à direita, o meu deserto. Ele deixará a flor ali, murcha... mas eu não sei se ela está morta. Deixarei para mais tarde. Eu não fico para vê-lo se levantar, com dificuldade, ou para me despedir. Confio que serei seguida dali a pouco pelo cavalo altivo da duna, e me viro para caminhar até a lagoa, onde vou me despir e me lavar, onde deixarei o pequeno cubo flutuar até anoitecer novamente.
 

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