quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Globo da Morte de Tudo de Nuno Ramos e a Resistência dos Valores Velhos



Ontem fomos ao Sesc Pompeia ver a performance de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska. Uma estrutura cúbica de estantes enormes ligadas a dois Globos da Morte, daqueles de circo, na parte interna do cubo. Nas estantes, objetos. Quatro categorias: vidro cerveja, vidro nanquim, cerâmica e porcelana. Antes de tudo, caminhávamos em torno e por dentro da obra. Esculturas de porcelana estilo casa de vó, feno, filtros de barro, utensílios antigos, moldes de dentes daqueles que a gente fazia na ortodontista. Mais um sem número de outras coisas. Por dentro encontramos um retrato do Paulo Coelho, uma prateleira inteira de exemplares do Memórias Póstumas de Brás Cubas (eu dei risada e disse: nossa que bom que isso vai cair). Entre a sensação ambígua de quarto de colecionador e acúmulo exaustivo de 'horder', curioso e levemente sufocante. Eu que costumo curtir observar obras em silêncio estava aliviada pela multidão conversando, sentia vontade de falar muito: a obra não pede contemplação. A ideia é: dois motoqueiros rodam nos globos da morte, a estrutura sacode, as coisas se destroem.

Ficamos bem para trás na multidão, na hora em que os motoqueiros entraram. O choque do circense e da galeria naquele espaço do Sesc Pompeia, pelo qual tenho um carinho nostálgico (passei ali carnavais vestida de Sininho enquanto ela ainda não se chamava TinkerBell), me arrancou um sorriso. O circo e a performance no fundo estão de mãos dadas, pensei, com um puta frio na barriga. Deram partida, as pessoas aplaudiam e gritavam animadas para o começo de um show. Eles começaram a girar. De fora, e ainda mais de longe, o olhar tem duas opções: foco nas coisas da estante, mais óbvio, ou foco nos motoqueiros lá dentro, zunindo. As estantes tremem, começam, aos poucos a cair coisas. O jogo está aí: as coisas demoram muito mais para cair do que a gente imagina. Caíram, do lado que nós víamos, apenas algumas coisas maiores, e a cada uma gritos de alegria da plateia. Se você foca, com esforço, o olhar no motoqueiro lá dentro, porém, eles estão zunindo de ponta cabeça numa velocidade estonteante: Globo da Morte como a gente via no circo mesmo, aterrorizante, barulhento, intenso. A pessoa com corpo de gente roda lá dentro numa velocidade de prender a respiração. A velocidade da queda dos objetos é outra: algo entre o tempo humano e o tempo histórico? Geológico? Superiterpretei? Ouvíamos, na ponta dos pés, o barulho de algo que se quebrava, aos poucos, e a cada barulho eu pensava que devia ter ficado do outro lado, “onde as coisas devem estar caindo mais rápido”. Nós queremos ver, nós queremos sentir a tal da morte desse tudo. A menina na minha frente grita “Quebra tudo!” É isso que nós estamos sentindo, e a coisa tem um crescente, quando mais eles rodam mais treme. Alguém no meio da plateia grita “Fora Temer!” e eu entendo que é isso: essa é a catarse da esquerda. Essa era pra ser a catarse da esquerda. Mas o que acontece é muito mais brilhante do que o script. Tudo isso em poucos minutos para. Eu não sei por que, não consigo ver. O motoqueiro de trás parou. Dizem que ele caiu. Parece estar tudo bem. Demora a recomeçar. O outro motoqueiro faz mais duas rodadas: a sensação não é menos intensa. Eles estão se falando, o outro, parado em cima da moto parece dar sugestões. Como fazer essa porra toda cair sozinho. A real é: mesmo em dupla aposto que essa porra toda não cai.

Depois de mais duas tentativas ainda intensas e espetaculares, em que vemos cair um violão-celo (eu tinha ficado com dó quando vi o instrumento ali, na estante de cima. Na hora H torci com todo mundo pra ver ele se espatifar: a gente comemora cada momento), eles decidem acabar a performance. Não rolou? Rolou. Rolou pra caralho. Rolou mais do que o previsto: rolou que o mundo é um lugar cheio de metáforas e a catarse da esquerda está difícil, muito difícil. A gente grita Fora Temer, mas a porcelana brega e impositiva, aquela que ocupa um espaço que não lhe cabe, não cai. Aliás, por aqui, ela anda vencendo no primeiro turno. O brilhante da obra é que ela abre espaço pra se significar sozinha, ali. Os motoqueiros descem e recebem os aplausos da plateia. É impossível fugir das metáforas, impossível não se sentir elite intelectual que aplaude a força de trabalho, que no fundo é artística, é estética, é revolucionária. É artista de Globo da Morte (que não é Rede, pelo contrário) tentando detonar essas porras todas. Mas elas não caem. Algumas. A gente vibra pelas poucas. O genial da obra ontem foi esse coito interrompido da esquerda paulistana. Depois de domingo, depois de impeachment, não poderia ter sido diferente. A gente quer brincar de sentir alívio, a gente quer brincar de catarse, mas a obra ganha vida própria, e manda tapão na cara. Curte aí essas poucas peças que caem, curte aí essa vontade coletiva de cair, o barulho, o cheiro de diesel, curte aí e aplaude agradece os caras que estão tentando. Um deles saiu mancando. Espero que ele esteja bem.

É claro que parte dessa sensação já está na proposta da obra: mesmo com os dois motoqueiros rodando a toda, as coisas demoram mais a cair do que a gente pensa, e isso é brilhante. Mas no vídeo da performance que rolou no Rio a gente ve que a coisa vai se intensificando, tem um gosto sim de catarse, que a gente, de São Paulo, não teve. “É como um bichão que se sacode, que quer se livrar dessas coisas, desses mosquitinhos nas costas”, diz o Nuno no vídeo. Pois é, os mosquitinhos dos valores velhos resistem. Aqui em sampa eles são mais duros ainda. Aqui em sampa em pleno 2016 está difícil gritar Fora Temer e ver algo cair. Ontem foi quase sem vandalismo, e a grande sacada Brechtiana de tudo isso é que catarse às vezes não transforma. Quem sabe esse coito interrompido da esquerda deixe uma pulga atrás da orelha, para sacudir depois.

Fica o desejo que na performance do segundo turno no Rio a casa caia pras velhas dentaduras: “Quebra tudo!” eu grito junto dela, aqui em silêncio.

Parabéns, Nuno e Eduardo, porque mesmo o implanejável se planeja numa obra, de alguma forma: essa capacidade de dar vazão àquilo que o mundo propõe, e não vice versa.

Sampa do meu coração, onde eu já pulei outros carnavais, bora levar essa pra casa, quem sabe pegar nuns bastões, aprender a rodar essa porra direito.

Vaso ruim não quebra. Vamos ter que sacudir mais.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Um poema para Margaret Atwood

acho que não existe uma mesa sequer nessa cidade
com uma janela ou um vão ao lado
em que não se ouça o som de serras
britadeiras
furadeiras
essa ampliação até o limite
do som das máquinas de dentista
o agudo que pulsa dentro da raiz do dente
até o topo da espinha
e de retorno ao estômago:
tudo no mundo está em obras

existe uma ansiedade pulsante
que a gente lê e acredita e assina embaixo
ser nossa
minha
particular
intransferível
íntima e inconfessável
todos os horóscopos dizem a mesma coisa
o pulso logo abaixo da garganta
é unânime

o mundo é uma cobra que se prepara para o bote
a minha esofagite
a sua rinite
a nossa cólica
não é minha

pai nosso, mãe de ninguém

minha loucura, não te acalma
te caçam na esquina se você vacila
não te acalma, te apruma
veste o waterproof dos sorrisos de batom
tece uma mortalha de dia
escreve poemas de noite
passa por baixo da porta
para a cela ao lado

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Relendo A Imaginação Feminina no Poder 30 anos depois ou: Por que ler Ana C.

Relendo A Imaginação Feminina no Poder 30 anos depois ou: Por que ler Ana C.

Em 1981 Heloisa Buarque de Holanda publica no Jornal do Brasil o artigo intitulado A Imaginação Feminina no Poder, discutindo uma aparente nova cena de mulheres poetas brasileiras, e tendo Ana Cristina Cesar como porta de entrada e centro para a discussão. Heloisa abre seu artigo pela seguinte descrição:
"Trajando knickers amarelo, sandálias chinesas, cabelo punk, com diploma M. A em tradução literária from Essex, e um livro editado em Londres, acaba de retornar ao Brasil Ana Cristina Cesar. Pelo desempenho e visual não deixa margem à dúvida: trata-se do que se convencionou chamar de uma mulher moderna, independente e bem-sucedida."

A introdução da imagem, descrição de uma persona da mulher moderna, independente, bem sucedida introduz a aparente contradição discutida pela autora no texto: A figura daquilo que seria uma convenção de “mulher moderna bem sucedida” é contraposta ao título ("que desconcerta essa imagem") do livro publicado por Ana: Luvas de Pelica, e pela descrição da capa: "que traz um manequim em primeiro plano, oferecendo pó de arroz e perfumes numa vitrina de moda em semitons rosa shocking. Um diário de alcova? Rabiscos e sonhos de uma moça bem-comportada?"

Essa discussão dá o tom do artigo de Heloisa Buarque de Holanda: A imagem da autora mulher bem sucedida e independente não corresponde aos estereótipos da época na sua escrita: O momento histórico pedia da “mulher independente” uma poesia da recusa às imagens de feminilidade tradicionais. Das escritoras da década anterior ao universo institucional em transformação, e aos programas de televisão voltados para a voz feminina, Heloisa faz um breve apanhado do cenário contemporâneo a seu texto no que diz respeito à voz feminina no Brasil. Comenta a linguagem de uma poesia feminina da década de setenta que denomina como "fala feminina liberada", que se permite tomar espaços do discurso resguardados ao homem, e aponta com precisão a premiação da poeta Gilka Machado (a quem inclusive elogia), como reconhecimento tardio, mas que representa o início de um ganho de espaço das reivindicações femininas dos anos setenta.

Por outro lado, diante de tal cenário Heloisa vê surgir uma nova geração de mulheres na poesia, que parecem trazer de volta à tona os temas do cotidiano íntimo e especificamente doméstico. Depois de uma comparação de títulos entre as gerações, Heloisa se atém ao pequeno livro de Ana C: Luvas de Pelica seria um diário de viagem, e aqui as observações da autora aprofundam a aparente contradição. Ao invés de relatar idas, descobertas, etc, o diário de viagem de Ana C surpreende o leitor que busca as expectativas tradicionais do gênero:

"O que parece interessar aqui é precisamente o não ir, o ficar, o voltar e o exercício obsessivo de escrever inúmeras cartas para o ponto de partida, a empenhadíssima construção de um pequeno espaço silêncios, em vez da conquista e da exploração do mundo." comenta Heloisa.

Para a autora, a proposta do livro é justamente uma retomada do tom íntimo e das imagens de universo doméstico, sensibilidade e confinamento. O livro estaria construído em torno dos "estigmas femininos", que seriam, segundo ela, "tabus para o feminismo". Fazendo uma crítica bastante direta e dura, porém coerente em sua argumentação, Heloisa Buarque de Holanda parte de sua análise da obra de Ana C para falar mais diretamente ao discurso feminista:
"Sem que se possa duvidar dos objetivos de sua luta, o discurso feminista supõe algumas simplificações e uma certa incapacidade, enquanto linguagem, para enfrentar seus fantasmas mais delicados. Na busca da igualdade, o discurso que informa as lutas feministas de certa maneira legitima os mitos que sustentam o modo de produção capitalista."

Para a autora, Ana Cristina Cesar, em conjunto com uma série de outras poetas a quem vai acrescentando à discussão (Mara Lucia Alvin, Lucia Villares, e Maria Rita Kehl), parece apresentar uma saída poética para essa linguagem feminista à qual ela deseja criticar. Algo de novo na linguagem feminina se apresenta para a autora a partir desse lugar do discurso feminino que retoma os temas característicos do espaço tradicionalmente feminino. O livro em forma de diário de viagem que trabalha muito mais as imagens de confinamento, segredo, cartas enviadas à casa, construiria poeticamente justamente esse espaço, uma retomada da linguagem “feminina” rejeitada anteriormente.

É interessante porém nos ater ao momento em que Heloisa menciona uma conversa com Ana Cristina, na qual a poeta fala do livro em questão a partir de uma imagem bastante interessante:
"Ela, ao se referir ao livro, conta, como numa parábola, a história da passividade do óvulo: 'Sem dar a menor atenção à verdade fisiológica, diz-se que o óvulo, imóvel, fica à espera do exercício tumultuoso e valente de espermatozoides para ser fecundado. Ninguém fala da longa e perigosa viagem solitária percorrida pelo óvulo através de túneis obscuros'. E conclui: 'Esse livro que aborda as viagens pelo lado do confinamento é uma contribuição à biologia do segredo e à maldade desse tom'.

A relação que a poeta faz entre a pressuposta inatividade/passividade do óvulo e sua proposta no livro de "viagens pelo lado do confinamento" é bastante interessante para pensar, como o faz Heloisa, essa proposta da retomada do lugar do confinamento feminino, das imagens do ambiente doméstico na linguagem da poesia feminina. Parece importante lembrar, no entanto, que a ideia do papel ilusoriamente passivo do óvulo, e a crítica ao sustento machista desse pressuposto se remete a ninguém menos que Simone de Beauvoir, na base da teoria feminista. Talvez, portanto, o que ocorra nessas propostas poéticas que surgem ali, das mulheres do início da década de 80, sensivelmente observadas por Heloisa Buarque de Holanda, seja antes uma reorganização dessa linguagem crítica da mulher, feminista mesmo, e uma forma de trazer à tona a discussão dessas imagens de passividade e reclusão, suas ambivalências e contradições inerentes, do que uma recusa direta da tal linguagem feminista criticada por Buarque de Holanda. A autora detecta nessa nova geração de mulheres na poesia, aquilo que ela chama de "sintomas de um discurso pós-feminista, um novo espaço para a reflexão sobre o poder da imaginação feminina."

Para aquelas que lêm o artigo de Heloisa aqui dessa distância temporal de já mais de trinta anos, talvez o termo pós-feminista cause estranhamento (ou para algumas, como esta que vos fala, bastante incômodo) e não é à toa. Num momento em que o feminismo se tornou, novamente, assunto pop, e se discute longamente nos blogs, redes sociais, e tantos outros ambientes reais e virtuais a importância de um movimento que parece aos poucos ganhar de fato novas caras, em constante transformação, mais inclusivo aliás, soa bastante estranho falar em "pós feminismo". O que me parece, no entanto, é que as palavras de Heloisa Buarque de Holanda refletem um momento bastante específico da nossa história cultural, e o que se havia produzido em termos de literatura informada e inspirada pelo feminismo nos anos 70 por grande parte das poetas no Brasil se reduzia, de certa forma, a esse feminismo no qual Ana C e suas companheiras de geração já não cabem. O significado do termo 'feminismo' muda (atualmente talvez mais plural do que nunca) imensamente nesses últimos trinta anos, e talvez o feminismo ao qual Heloisa se referisse em 81 seja bastante específico dessa estética do choque e do desrecalque. Nesse contexto poetas como Ana C vêm inaugurar um novo momento em que, cansadas dos brados, buscam novos significados (bastante críticos, aliás) para o universo da suposta "feminilidade", pelo lado de dentro.

Vale observar, por outro lado, que seria ilusório acreditar que tenha sido superada a necessidade dos brados e afirmações severas de direito a um espaço para além do doméstico na nossa cultura, e que mesmo nos idos de 2016 ainda se precisa publicamente lutar contra a imagem imposta por veículos de comunicação da mulher "bela, recatada e do lar". Mas notemos que, para isso, hoje a militância feminista, talvez mais massificada, parece querer se constituir inclusiva, ditando menos as regras do "desrecalque". Mais a mulher do "lugar de mulher é onde ela quiser", do que a negação completa do lar. Que a mulher possa ser "do lar" ou "do bar", em momentos diferentes, pediam algumas das hashtags usadas na resposta à revista Veja e sua descrição redutora porém exaltante de Marcela Temer. Hoje parece haver maior investimento no protagonismo e no poder de escolha, com todos os problemas de individualismo que isso poderá nos trazer, e também as vantagens. Tudo são fases. Ainda assim talvez esse "pós-feminismo" poético que Heloisa anunciava em 81 (e eu preferia hoje chamar de feminismo mesmo, apenas num momento específico, em movimento como todo conceito, na disputa eterna de significados), tenha ajudado a construir as bases para a cultura feminista que se configura hoje, mais popularizada, talvez. Uma cultura feminista menos resumida à estética do choque (que não precise abrir mão totalmente dela, mas que encontre nos âmbitos da sensibilidade também suas manifestações), uma cultura do feminismo mais plural nas suas manifestações artísticas, imagéticas, poéticas. A própria pluralidade de “feminismos” da qual se fala hoje na militância e no espaço mais massificado das redes sociais talvez seja fruto também dessa mudança que se evidencia pelas poetas da geração de Ana Cristina: ser mulher e procurar compreender-se enquanto mulher se torna mais plural, as imagens se misturam entre a delicadeza e o soco, há menos certo e errado. O que não quer dizer que haja menos busca, menos perguntas, pelo contrário. É possível que essas poetas das quais nos falava Heloisa em 81, Ana C como carro chefe, tenham contribuído imensamente na construção, justamente, das imagens da cultura pop atual, mais plurais da mulher. 

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Um poema em U

eu queria...
te escrever um poema.

era importante
te escrever um poema.
como se quando eu, finalmente,
te escrevesse um poema
fosse ser possível
ver estrelas
o primeiro planeta
que não se vê daqui,
focar o espaço embaçado sem os óculos,
vestir uma lã que coubesse,
estancar um corte, descansar um corpo.

como se fosse, a cada palavra, ser desdobrado
um barco de papel

quando o poema chegasse.

o poema está engasgado
o poema arranha
o poema está engolido feito um choro
feito um choro bom
(alguém engole choro bom?)

o poema quer existir como uma pedra, uma concha,
mas ele pisca
refrata,
uma imagem que deseja desesperadamente ser refletida
numa onda.
ele esboça
dança
ensaia,
mas a onda quebra.
o poema se vsilumbra
deslumbra,
e desiste.

os desenhos das montanhas que se espelham na areia da praia...

o poema não dá tempo

o poema queria ser uma praia
pra você deitar um lábio sorridente uma sobrancelha tranquila
o poema queria ser e não sabe
o poema queria saber e não é

o poema não dá cabo

uma pipa sem rabo descaso de menina que fez só
um losango de papel de seda
sedo
a sede é o poema que queria ser de
quem antes de mim fez versos
de quem depois de mim fará
mas é meu
e em mim não sabe pousar

o poema não é meu
o poema é seu
mas ele não sai
ensaio
um desmaio oblícuo
um grito curto
um mergulho fundo
recaio
diante da soleira

o poema é um homem de terno com um buquê de flores
que não toca uma campainha
que não berra debaixo da sacada
nem canta

o poema está quieto
bicho tímido
acabrunhado e mudo
pintando os próprios lábios
pra ver se aparece

meu lápis de olho é uma caneta bic

o poema me olha de lado
ri da minha cara
imita a tua risada
pra me fazer sorrir

há tanto tempo eu quero
te escrever um poema.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

quinta

Essas cores de inverno tardio estão ridículas
    vivas e ardidas
    bonitas mesmo.
E os óculos que são pra longe e perto
                               segundo ele
não vêm longe um caralho.

prefiro a brandura sem aros

Está gelado como se quis
Aqui
longe de você e da luta.
passada a pauta, o papel contact.
Está gelado depois de dizer 'não quero mais,
querida, não quero mais os teus conselhos grossos'
essa massa de piche, esse púlpito.

Gelada, mas azul
um azul cru
sobre o vermelho-terra do prédio da frente
(que é na verdade prédio de trás)
uma nesga de árvore no meio roncando de verde
o som do busão com as núvens por cima.

Puta que me pariu quanta beleza
nesses pedaços
caquinhos
de fim de tarde
nesse gelo de logo antes de vestir a meia

- Dormir com dois cobertores
  Ter plantas na sacada
  Conseguir pensar em qualquer outra coisa . -

A lambida laranja que desce sobre a Lapa
hoje não misturou nenhum
dos tons da minha janela

O som das buzinas é claro
Tudo é mensurável
          audível
           tudo dá pra ver.

O sol se põe, mas não escurece.

segunda-feira, 28 de março de 2016

morte

tem sempre alguém que está morrendo. no mundo, tem sempre alguém morrendo. morre muita gente no mundo, muita gente diria. Nasce também muita gente no mundo. Mas às vezes tem a notícia de alguém que está morrendo. Alguém que estava vivo, alguém que apareceu na nossa história está morrendo. Alguém que a gente lembra da voz, alguém que a gente conhece o sotaque, o jeito do sorriso, a posição dos dentes, o jeito que gosta das coisas, a arte que fez. Alguém que estava vivo está morrendo. A voz ecoa ainda dentro da gente, e a pessoa morre fora da gente. Perdemos, nós perdemos, como uma partida do jogo: time, perdemos essa. A gente para, respira, aperta e esguicha sal, porque perdemos uma pessoa. Não precisa medir a proximidade, sim, a dor é maior quanto mais perto do ponto na reta: mas é morte, apaga uma coisa que estava acesa, silencia, seca um espaço, some uma cor leve do céu. às vezes choramos por pessoas que não conhecíamos: anthony marignetti, david bowie, lou reed. mas a arte da pessoa é a pessoa misturada com outras coisas, e a gente chora porque o mundo não tem mais uma coisa que tinha antes. antes no mundo existia uma pessoa chamada lou reed que fez um disco que me faz chorar para os dois amigos dele que morreram de câncer, que costura o luto dos outros, que faz poema com a guitarra e canta a cidade de nova york como precisava alguém cantar. depois daquele dia, não tinha mais isso no mundo. perdemos, dá aqui tua mão, moça do meu lado na fila do mercado, me da a mão, dono da papelaria, me dá a mão que não tem mais no mundo uma coisa que tinha antes, e que era tão bonita, e que eu não conhecendo eu conheço uma pegada, e eu vejo a cor que desaparece entre as outras. eu imagino, e imaginando a gente vê.

lou reed morreu dia 27 de outubro de 2013. eu fui para ny na semana seguinte, deitei numa cama num quarto alugado de um apartamento e escutei o New York olhando pro teto, chorando de vez em quando, colorindo nos espaços em branco entre as letras, imaginando o espaço possível que ele me deu de presente, e entendendo que a voz gravada entrando pelos meus ouvidos não existia mais. agradeci a alguns deuses pelo privilégio de tê-lo visto tocar ao vivo uma vez um som tão lindo e distante da linguagem em que conversávamos, eu e o querido amigo sentado ao meu lado. me lembro de ter escrito algo de lapis no escuro no panfleto do show no meio de uma música, uma frase que devia um dia virar um poema. não sei mais a frase, não escrevi o poema. Ontem procurava um cd para ouvir na estrada e uma coincidência colocou o Magic and Loss na minha mão. Outro disco do Lou Reed, bem posterior ao New York. O Magic and Loss foi feito para dois amigos dele que morreram de câncer, naquele formato poesia-punk dele em que frases dissonantemente diretas e anti-sentimentais atravessam mares de sons doloridos e fundos de um azul ou preto, cause "the coal black sea waits forever", ou cortes de metáfora estilhaçam um aparentemente inocente rockzinho animado. Pensei naquela guitarra que pra mim sempre pareceu poesia em língua estrangeira. Poesia numa língua antiga que não falo, mas que, muitos anos atrás, originou a minha (talvez no ouvido dos meus pais, recém apaixonados de jaquetas de couro e cabelos raspados aos vintepoucos anos). Pensei naqueles punk poems regados a melodia do magic and loss e dos amigos dele que teriam escutado de novo essas canções depois da morte dele, ressignificando e mudando personagens de lugar: agora somos nós that didn't get a chance to say goodbye. Pensei nos lutos. Pensei na Mônica também.

Hoje de manhã minha mãe me contou que a Mônica estava morrendo, já estava no hospital há alguns dias, e não havia mais muito o que fazer. As histórias de câncer se repetem. Lembrei da Jane, que visitamos todos os últimos dias. Hoje a Mônica morreu em um hospital em Porto Alegre. And no I didn't get a chance to say goodbye. A história não é minha, quase tanto quanto não é minha a morte do Lou Reed. Mas o luto dele pelos amigos no magic and loss, o luto nosso por ele e por sua guitarra escritora de poemas faz trança no ar com a Mônica e sua risada, tudo o que ela construiu, seus filmes, seus amigos, seu jeito de dizer o nome das pessoas. Gostava muito do seu sotaque. Gostava de muitas coisas. A morte nos outros é a morte na gente também, a lembrança daquilo que tece o chão onde pisamos: "there's a bit of magic in everything. and then some loss to even things out". Pensamos que temos que ir no médico, que temos que dizer que nos amamos, que temos que ser mais verdadeiros, pensamos em desespero que queremos viver pra sempre. Não, eu não acho que sejamos egoístas: eu acho que a morte é uma rede, e que os pontos de encontro os nós são feitos são nós de pensar nos outros e de pensar em nós. Quando anthony morreu eu chorei e tive muita certeza de que era preciso ser verdadeira com o que eu sentia: não posso morrer sem viver isso. eu chorei pela perda da pessoa que não conheço, com quem troquei três mensagens, mas que escreveu coisas belas e disse coisas lindas a uma pessoa que escreveu outras coisas belas que me fazem ser quem eu sou. a rede. A rede não é projeção da gente no mundo: a rede é a gente no mundo. Eu amo minha invenção dessas pessoas que não é menos real que a minha lembrança da Mônica escalando a pedra nãolembroonome e a gente acenando lá embaixo, e a Mônica pra quem eu dei chiclete sabor hortelã porque tinha a piada no filme, e ela me olhava e sorria e eu achava que ela estava feliz porque tinha uma criança no meio daquela bagunça toda de pós-produção. Amor é amor, e se mistura com imaginação, com dor, com o que a gente quer e não quer para nós. Tive muito medo de morrer hoje. Tive muito medo de perder as pessoas que amo hoje. Chorei o choro da amiga e do marido que estão agora se preparando para ir para o enterro amanhã e que vão aprender a viver sem um pedaço deles para sempre. Nós perdemos, time, hoje nós perdemos mais uma pessoa. Mais um pedaço de sol, de cor. 

Pensei também ontem que, por alguma sorte minha, a maioria das pessoas que perdi estão vivas. A maioria das pessoas que perdi não morreram, perdi pra outras coisas, mas não pra morte. Perdi algumas pessoas para a morte sim: a Doni quando criança, quando comecei a tentar entender o que era alguém deixar de existir. O Florestan na adolescência, dia 20 de Outubro de 2003, perto do dia do lou reed, 10 anos antes. O Florestan que está em todos os pores do sol que eu olhar pro resto da minha vida, e que tinha sardas e cachos, e sim, me lembro da voz dele. E ontem também tocou Babe Im Gonna Leave You na estrada. A Jane cantando "se eu quiser falar com deus" numa clareira de mundo que se formou em torno para ouvir a voz mais profunda numa noite de grilos, e deixou pra nós a menina que me sabe mais que todos os seres: the angel on my bike. Perdi meu vô, meu "nonno", que fazia piadas e me leu a odisséia na infância, dolorido e antigo, um conto inacabado na gaveta desde então e um casulo da lagarta que encontramos na noite anterior na hortelã. Tudo tece metáforas, e é nelas que a gente se segura. Todas as pessoas viram histórias: não a história de vida delas só, mas a biblioteca imensa de histórias que se entrecruzam nas memórias dos outros, a gente dá cores e tons, e as pessoas ficam escritas no mundo, em milhões de versões. Ainda assim, a maioria das pessoas que eu perdi está viva. Isso, pensei, isso deveria bastar. Não, eu não vou, mesmo que me tente de leve no auge de alguns choros de solavanco, pegar o telefone e tentar reatar cortes que não têm linha, não por isso. Mas perder alguém para a vida não é como perder alguém para a morte. As pessoas que eu perdi para a vida, para as mudanças de cada um, para os momentos, para as distâncias, para os erros mútuos ou acertos, para os desencontros puros, essas pessoas o mundo ainda tem. Outras pessoas têm por perto as pessoas que eu perdi, e isso, insisto, isso deverá um dia me bastar. Me alegra agora saber que vocês existem. Que em algum lugar em algum canto vocês cantam, riem, escrevem, dançam, pensam, inventam e fazem vento e garoa macia para a vida de outras pessoas. Vocês existem, que alegria. As pessoas que eu perdi pra vida o mundo não perdeu. Isso deve bastar.

Quando aos outros, quanto à Mônica, à Jane, ao Nonno, ao Anthony, ao Lou Reed, o Bowie, o Florestan, a Doni. Quando a vocês: o mundo se encarrega de transformá-los em arte, tecida e trançada nas memórias e desenhos daqui. O mundo se encarrega, e eu faço meus votos: rego as flores e os pores do sol todos os dias pela manhã, e agradeço ao me deitar. Fiquem em palavras e amor. Vão em paz. 

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Unpainted

there is a canvas
on the corner of my bedroom
on the corner of my bedroom it sits and there it gathers dust
it is not a canvas, but a very old wooden framed reproduction of some painting.
probably 17th century art
it belonged, along with another dozen or so, to my grandfather
and I saved them when he died,
from the typhoon of my uncle's haste and anger,
from the earthquake of my grandmother's bitter pain
not because I wanted the figure, which I can't remember:
I saved it along with maybe another ten of them, because I wanted something
because I wanted garbage that had once been art
because I needed something that once had been beautiful to someone:
because I had been the family scavenger, roaming about rooms and gardens, behind bridges and under dinner tables, saving up broken pieces of. Of.

I still have the shattered green glass that belonged to my great grandmother in a box somewhere, which I broke stupidly and cried, because I left it on the floor by the sofa one night while watching TV. I stood up and kicked it, and it broke. But I don't keep only my old guilty shreds, the things that were still memories to myself, the things I broke personaly. It is my self-asigned job gathering bits of rest, rests of string, strings of wool left behind from the severed bonds. marriage, birth, companionships. I was the gatherer, and in my tiny shop I made my tiny baby frankensteins. my little affection monsters of clay, the small cardboard models of houses made to be build from wood and concrete. wax dolls of old smiles, from faces that never truly meant them.

I gathered the dozen or so old and cheap wooden frames with the already whitening images of famous paintings my grandfather held, one day, I imagine, dear. Not for him, but for us, whoever that may be. My first plan was an artistic project: I would cut up shreds from words written by all of them: my mother's thesis, my grandmother's papers, my uncle's books, and finaly my grandfather's autobiography, wich, scared, I never read. I would cut up the phrases to make new. I would glue them to the old reproductions of old paintings and with the old words I would glue together a frankenstein of my family. I tought it was an interesting contemporary piece about -the artist's- personal life and a deep critique on each member of my family's individual truth in words. It was brilliant. It was not. It was a lame excuse for the true work of the gatherer of ages: the collage artist of severed ties. It was to be, in truth, my final frankenstein, the last shred of unspoken hope for fiction and dream to glue together worlds. I never made it. As I often do, I left it, idealized and appreciated for what it was: the brilliant final project. The old portraits, or canvases, or were they art reproductions, sat there, waiting, in my closet, as patheticaly metaphorical as it sounds. Instead, one day, I chose one to make into a gift.

I had loved a woman ever since I met her. This story is not about this love. It is, as much as it is about all love and all loss and all pain and hatred and all the impossibility of holding, and my awful gift of breaking and broken things. I have come to open doors as much as I have come to break things. But some things need breaking, and it takes strenghth (and maybe it also takes oblivion) to do the work of the storms. In any case, although this -is- as much as it can be, the story of this love, I don't wish to tell it, not this part, not deeply. Let it be said only that I was a coward and that I was a liar, for I loved her more than I could hold, understand or believe, and that my love tore itself apart entirely, for lack of water and sun, for lack of air and space, and for charging, uncontrollably, incapable and desperate like a caged animal, in the right direction once it found it. Sometimes finding the right direction after a long time of darkness only means running desperately into blindness and abyss.

I had decided to make her a gift. I would paint over one of those old pictures from the canvases left by my grandfather, and over that I would glue slivers of pictures I had taken of her. Not the entire pictures, but slivers, between which I would write poetry about permanent things. No, I did not, at the time, catch any of the irony, neither did I understand that only could I ever, for whom I was, glue anything but slivers of the things I loved back together into those old portraits. I chose the pictures. I saved them on my computer's desktop. I've always had thousands of undone things saved on my desktop. I have more ideas than I have will, and I had the knack for the scavenger collage, which must never be entirely done. Then I looked through the things under my bed to find paint. I never painted, not really, so I had many half used bottles of school paint, washable paint, but also, ever since I was a little girl, plastic paint I used to make t-shirts for my dad on his birthday. These are permanent. I chose different tones of blue, and I splattered the old immage with lines of dark and light blue, and I smiled as I covered my old family cracks with an immense ocean I would only later understand the depths of. It was meant to say words of permanence, of things that last, of never-ending, never-leaving stories: it was meant to be a promise. I have made her many promises. I failed to keep them when I understood my guils would never grow, and I would never be alive under water forever.

They say the immense creature only comes to the surface once every six billion years. But the creature has no guils. The creature breathes. And once, every six billion years, the creature does come to the surface, and you can hear, from every corner of the world, the unmistakeable breath of the immense blue whale.

there she blows.

The birthday came, the ocean was beautifully scattered on the canvas, but the pictures were not printed, and the present was once again, undone. I am sure she resented me for the presents I promised and never gave, as much as I resented her for the presents she promised and never gave, the letters never read, or written. I know now we were unable to finish off these small tokens of our lies: we could lie every day, but we had to leave certain affection objects untouched, for they were not as big as our hearts. I can only guess if this is true on her side, but I, for once, am certain my heart was too gigantic to bare the small knots we tried to tie. It never got done. It sat, the ocean painting, on the corner of my bedroom, so I would not forget. The pictures all sat on my desktop, her beautiful reflections, the reproduction of a snowy peral skin, frekles I adored and the look I came to fear and almost even hate, for it tricked me between love and diception, and I never knew of the mirage or the beach.

This part of the story I will not tell, for this is not a confession letter, nor is it a letter of forgiveness to myself, though maybe both should come in time, but a retelling of the tale of the blue portrait, made from the pieces under the dinner table. This is the part where the creature's breath splashes the continents, where the seamen run and scream in desperation, where entire ships are sunk and lay at the bottom of the sea by one simple swift movement of the tail. It is also the part where the harpoons struck, and where, tied to the bleeding creature, wailing in the deepest cry afer the once-in-a-lifetime breath, the captain sank. This is the part I will not retell for I am not in place to recount the lives I have drowned nor the torments I have created, and it is not my intention to tell you the creature means no harm. I am neither here to repent, nor to retell of blood and assassination. Stories, as our lives, are not trials, which I will continue to refuse for they have the despicable habit of starting from the worng end, and ending at the bottom of a helpless pit, out of which people who are dangerously sure of themselves throw out the fruit they see rotten, and ignore the colors of the sky.

What's left is the day in which I took the old ocean-painted square thing out from the corner of my room, and stared at it's wrinkled childlike painting, covered in dust, and remembered every gift I never finished, and the words I never said in silence, or out-loud. It was over, and there was nothing to do. It was over and the promise of permanent matter has to go, because it was the last of the lies, holding together pieces of a love that would not dare come to light. Love, as people, does not want to die. And if you breathe, you are alive, and if you are alive, you will die. The fear was stronger and deeper than all the other promises. The ocean, though, is not deep enough for such fear, and one must, eventually, come up. I can see destruction and regret for the blood and the splashes as I look at it, but mostly the regret comes from somewhere else. The regret splashed onto the canvas is deeper than the ruins of the ships I wrecked in a few days or months. Regret is a thing of years, the words unsaid, the space unmade, the questions not asked, the things it took me so long to open. The gift I never finished, because it wasn't made for finishing. Because it was made from the spare-parts, because it was made to mend the eternal wounds. The wounds will be wounds. Dust covers this bizarre object that was to be a gift to the woman who will never forgive me. But the one thing that strikes me now is not the need to be forgiven. It is the feeling that she will never forgive me for the wrong things, the fact that I need forgiving not for the mess, the splashes, the truth in the recent blood. I need forgiving indeed, but for the six billion years where I had us believe the sea was a placid surface from which never would any thing, any one, any matter erupt. I need forgiving for the years in which I never asked her to dance with me, to open her eyes, to let me in, and out.

As I have said, I have come to break as much as to open. Openers are breakers, in the end. Some doors are locked, and sometimes you need to break in, or out. And now I stared at this would be present of an ocean that needed, as many things do, to be destroyed. I pondered. Burning something in a city like ours is a mess, simply something foolish people don't do, so I do not burn it, for I won't find the intimacy and the open space burning it would require. There are no tears as I take it to the bathroom and undress, turning on the shower, and setting it to cold, cold water. Somehow it needs cleaning, as much as it needs destroying. So, naked, I let the water run over it, half expecting the school paint to wash away and reveal something special underneath, something I have forgotten. But most of the paint is plastic, and I have to rip it apart, slowly, in pieces, like the skin of a sea animal. Underneath it, it is white. The paint has erased the old immage, and I won't ever know what it was. It doesn't matter, I wish not to restart the business of the scavenger underneath the dinner table, this will not be another frankenstein. I notice, thouhg, the other side of it seemed to have another old reproduction. It used to be a Van Gogh, hidden on the other side, glued to the wood. I'm surprised, as I expected old painters I don't like, and I smile vaguely remembering my grandfather loved things, once or twice, that I too find beauty in. But there is little or no temptation to keep this, though it hurts like washing an open wound. The old paper and paint make for pieces of skin I gather in a small ball, soaked in water. It could make something new, I think, and I look at it with love. But it won't, and it shouldn't. I gather the pieces, and throw them in a bag, left with the cheap wooden frame underneath. Should I break it in little pieces? Burn it after all? I stare at how blank and firm it looks, and the scavenger in me makes a move, suggesting how much this too could be transformed, reused, remade, glued into new forms of life. But I'm retired now, I have found my way back into the world which I came from, where things are made up and written down, not glued back and frankensteined. I do not want my old job back. I consider smashing it to pieces so no one else can remake it, but there is no anger. I understand that when and if it falls in new hands, the canvas will not be the slivers of severed ties, but something new. Truly new. I understand that by saying goodbye to this perfectly good piece of wood I am allowing someone who would actually be far removed enough to transform this deeply, to take it from me, to live. To love over the old wood, or to warm themselves on it, burning the last bit of love I could not live. I remember the young girls hand in hand walking from the icecream place, honest with each other as with themselves, like we were never able to be, and I give them my blessings. And then I take it all outside, and I say goodblye.

and I dive once more, in the truest and most transparent waters I would have ever hoped for.